O Subterrâneo do Morro do Castelo/Sábado, 3 de junho de 1905

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Os Subterrâneos do Rio de Janeiro[editar]

Os Tesouros dos Jesuítas[editar]

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Não espantara do Castelo a volta rápida do padre João de Jouquières. Toda a comunidade sabia que o fidalgo francês, habituado à vida calma e descuidosa das cortes, amando o mundo e as suas paixões, embora os fingisse desprezar, não se submeteria por muito tempo às dolorosas provações da catequese no fundo dos sertões brasileiros.

De resto, o superior da Ordem sentia-se vingado; D. Garça não quisera escutar os seus protestos de amor, é verdade; mas agora, ele o sabia claramente, estava nos braços de outro, do seu ex-amante e isto bastava para que ele se sentisse compensado da sua humilhação pela humilhação do rival.

Entretanto o padre João, sentindo-se traído, concebeu friamente, calculadamente o seu plano de diabólica vingança. Ao chegar a S. Sebastião foi o seu primeiro passo dirigido para o Colégio onde apresentou ao seu prior desculpas tais que este fingiu aceitar.

Logo na noite imediata, embuçado em longa capa, seguiu pela galeria do Norte e daí tomou a derivação que ia ter à casa da sua amante infiel.

Mergulhada na treva espessa de uma noite de inverno, a cidade dormia. Nas ruas silentes e solitárias nem um rumor sequer vinha despertar o sono profundo e quieto da população.

Duclerc recolhera-se cedo à casa de sua eleita.

Reconciliados e felizes, as horas passavam-se tão céleres que cumpria aproveitá-las todas, avaramente, com medo que fugissem para não mais voltar.

Atravessando a extensa galeria, o padre João sustentava na mão esquerda uma candeia de azeite, enquanto a direita comprimia nervosamente o cabo negro de um punhal.

Vencida a pequena escada que dava acesso para a sala onde D. Garça costumava fazer as suas orações, ei-lo de pé, em frente ao oratório onde bruxuleava a luz mortiça de uma lamparina.

Depôs no chão a candeia de azeite que uma forte lufada de vento apagou.

Depois, pé ante pé, dirigiu-se à sala de jantar e daí por um pequeno corredor chegou à porta do dormitório de sua ex-amante.

Os lábios do jesuíta tremiam de ódio e comoção; entretanto os seus dedos crispados comprimiam com fúria o cabo do punhal preparando o golpe certeiro e decisivo.

A porta estava semi-aberta; olhou.

Os seus olhos, acostumados à treva, divisaram sobre o leito alvíssimos dois corpos humanos ligados num mesmo abraço.

O ódio irrompeu então, indomado e terrível na sua alma, presa de uma angústia sem nome; venceu a pequena distância que o separava do leito e com o punhal erguido, pronto a vibrar o golpe, contemplou um momento aqueles dois corpos adormecidos.

Depois, num movimento rápido e seguro, a lâmina branca do punhal cravou-se inteira no peito de Duclerc.

Ele não dera um gemido; o ferro atravessara-lhe o coração, matando-o instantaneamente.

D. Garça despertou sobressaltada; os seus olhos negros e faiscantes distinguiram na treva do quarto o vulto do jesuíta; compreendeu tudo e, sentindo ao lado o corpo exâmine e frio do seu amado, exclamou:

— Mata-me, Jean.

— Não, não te matarei, tornou este; tu és agora minha, somente minha, não tenho mais rival.

— Enganas-te! exclamou D. Garça, erguendo meio corpo do leito.

Era ele a quem eu amava; mataste-o, pois bem, jamais te tornarei a pertencer, covarde!

As faces do jesuíta contraíram-se num rictus de ódio terrível; uma nuvem negra de vingança e de vergonha passou ante os seus olhos esgazeados; a sua mão crispada mais uma vez se ergueu e a um golpe de punhal o corpo de D. Garça caiu redondamente no leito.



No dia seguinte espalhava-se por todo S. Sebastião a notícia da morte misteriosa de Duclerc.

Em vão se fizeram pesquisas para a descoberta do assassino do capitão francês e da bela italiana.

Mas deu muito o que falar a estranha coincidência de ter sido encontrado no mesmo dia, no leito da sua cela do colégio, o corpo inanimado do padre João de Jouquières e junto ao seu cadáver um vidro de veneno e um punhal tinto de sangue.



Aqui termina o manuscrito.