O Subterrâneo do Morro do Castelo/Sexta-feira, 12 de maio de 1905

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Os Subterrâneos do Rio de Janeiro[editar]

O Tesouro dos Jesuítas[editar]

D. Garça[editar]

I (continuação)[editar]

— Ahn! É Duclerc, refletiu com indiferença D. Alda.

— Não te espantas?

— De quê? De medo, não podia ser; estou bem protegida. Demais, o nome não é tão ilustre assim; um marinheiro obscuro que quer fazer fortuna em empresas arriscadas...

— Alda! Dissimulas... escondes algum segredo...

— Eu?!

— Sim, escondes.

Ainda amas o crioulo?

— Não o amo, Jean, objetou firmemente a senhora, e bem deves ter verificado isto.

— Então de quem foi a carta da América portuguesa que ele recebeu?

— Que carta?

— Sim... uma carta. Os nossos irmãos de França pretendem que ele recebeu uma carta de Pernambuco ou daqui; e que, depois dela, provocou a expedição.

— Ah! Compreendo. Queres dizer que a carta foi minha, não é?

— É...

— Ora, ora, Marquês, gargalhou a condessa. Nem pareces o fidalgo de quem Mme. de Mainte me dizia ter tanto espírito como o famoso cura de Meudon! Nem pareces o jesuíta que em poucos anos preencheu os quatro dificultosos votos da Ordem! Pois numa terra em que abundam aventureiros de toda a casta, vingativos, sequiosos e dúcteis; pois numa terra dessas, havia de ser eu, uma fraca mulher, a quem a Ordem de Jesus protege —havia de ser eu quem chamaria corsários contra ela?

A condessa italiana tinha falafo com várias entonações na voz. Cedo bordava as palavras de uma tênue ironia para, depois, falar com ardor e paixão. Em outras vezes ameigava a voz com um forte acento humilde; e quando, de um só jato, lhe saiu dos lábios a última frase, o pranto aljofrava-lhe as faces de cetim.

— Não chores, Alda! É meu amor que me faz assim. Conheces o quanto ele é forte e imperioso. É um amor infernal. Por ele sofri, sofro e sofrerei durante as minhas duas vidas. Perdoa-me, Alda.

Quando o passado me vem, continuou o jesuíta com ternura, quando o passado me vem, não sei que zelos me sobem à alma. Quero penetrar, devassar arcanos do teu pensamento; e, como a bala que, por ter demasiada força, transmonta e passa além do alvo, a minha penetração me engana, me desvaira. No teu gesto mais familiar, numa palavra dita a meio, no modo por que bebes o vinho, eu vejo traições, traições.

De resto, andas sempre triste...

— E tu me querias alegre, quando deixei a consideração, a posição, o império, para viver nesta feitoria cheia de negros e selvagens?

— Mas, e eu?

—Não é o mesmo, Jean; sempre tens consideração e poder. És o respeitado irmão professo da Companhia de Jesus, enquanto que eu, que tenho o sangue de Lourenço, o Magnífico, a gentalha deste lugar tem por mim dó, piedade...

— E te aborrece?

— Como não? como não se há de aborrecer a "considerada" condessa, com a piedade da mais ínfima gente da terra toda?

— Oh! Alda!...

— E por que isso? Porque é bonita mulher de um funcionário secundário, que a abandona e se embriaga.

Entretanto, essa bela mulher não o ama, não se casou com ele; e tem por esse indivíduo a piedade que envolve também os vermes. Supõem-me amá-lo, ah! nem sabem...

— Sossega, Alda. Não vês que também eu desmereci da honra de freqüentar a mais bela corte do orbe, e a glória de emular com os Racine e os Corneille? Os dois sacrifícios se equivalem, Alda.

— Oh! Jean. Não compares. Ninguém se apieda de ti. Ninguém se lembrou ainda de te pôr doces alcunhas.

Nesta cidade, sou a GARÇA, a D. GARÇA, como me chegam a chamar familiarmente; e quando o poviléu põe alcunhas meigas é porque sente muita desgraça no alcunhado, Jean.

— Espera... Alda. De volta da missão que vou pregar, voltarei à Europa; e lá, então, serás restabelecida na tua posição.

— Nunca mais. Nunca. Aqui enxovalhei-me.

O diálogo, depois de impetuoso, tinha, aos poucos, baixado de tom, e seguiram-se a estas palavras pequenas frases explicativas, que o clérigo rematou, aconselhando:

— Dorme; sossega; pensa melhor, Alda.

— Tu te vais? inquiriu com espanto a condessa, vendo o padre acender a lanterna.

— Vou. Há capítulos. Adeus, D. Garça; ama-me sempre.

— Adeus, Jean.

E os dois beijaram-se por longo tempo.

A condessa, logo que o clérigo saiu, ajoelhou-se ao oratório e, imperceptivelmente, disse:

— Graças a ti, minha Nossa Senhora. Graças! Ele vem.

(Continua)