O edifício da cruz vermelha

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Nos últimos dias do mês passado, o Rio-Jornal deu-nos uma larga notícia sobre as coisas da Cruz Vermelha Brasileira. O começo da notícia é tão de lamúrias a ponto de pro­vocar lágrimas.

Diz e repete que essa sociedade humanitária "vive esque­cida, cinicamente alimentada pelo entusiasmo inarrefecível de diminuto grupo de patrícios, utopistas na condenação injustifi­cável de indivíduos acanhados no seu modo de ver.

"Ignorada, trabalhando em silêncio e cônscia de sua modéstia, pelo criminoso descaso que lhe votam os responsáveis, os espetaculosos promotores de festas de caridade em benefício dos infelizes europeus e quiçá a população em geral, ela, no cenário da vida da cidade, só surge nos transes difíceis e horríveis como os dolorosos e negros dias da pandemia gripal."

Segundo me consta, essa história da Cruz Vermelha é destinada a socorrer feridos de guerra. Ora, o Brasil há muito tempo não se mete em guerra.

Sendo assim, como é então que querem que a nossa Cruz Vermelha seja conhecida? Não há de querer ela que, para se ostentar ao grande público, haja, de ano em ano, uma guerra com o Brasil. Longe, portanto, de se lastimar, a Cruz Vermelha deve exultar com a sua obscuridade!

Entretanto, ela não é assim tão total como diz o Rio-Jornal.

Há meses, houve lá uma eleição de diretoria. Dias antes, muitos mesmo, os apedidos dos jornais e outras seções vi­nham cheios dela. O eixo da disputa era ter o presidente mandado em missão ao Paraná e outros lugares uma parteira, como portadora de credenciais da associação. Sem cobras e lagartos e todos os leitores de jornais, que são o verdadeiro público do Rio de Janeiro, se não tinham notícia da "Cruz Vermelha", vieram a tê-la com o escândalo jornalístico.

Eu não sei bem que utilidade pode ter uma parteira para tratar feridos de guerra. Creio bem que os ferimentos de que essas especialistas podem curar, não se adquirem na guerra, mas fora dela, em cura de partos, que por eufemismo ou outra figura de retórica, chamam de batalha, guerra de amor, os singulares combates em que os estragos redundam em trabalho para os obstetras.

Agora, eu me lembro - e por lealdade declaro - que, há muitos anos, li a nomeação do doutor Abel Parente para médico parteiro da Guarda Nacional. Mas, isto foi no Filhote da Gazeta. Além disto, a eleição da diretoria foi um sucesso que causou inveja ao Honório Pimentel, de Santa Cruz.

A notícia que traz o endemoninhado Rio-Jornal,se alonga em outras considerações; e, até, estampa um cliché do edi­fício projetado para a sede de todos os serviços que a Cruz quer prestar ao país, à cidade, na paz e na guerra.

É olhá-lo para se chegar logo à conclusão de que quem o projetou não é arquiteto, nem mesmo engenheiro: é um marceneiro.

Os senhores conhecem essas espécies de cômodas de escritório, em cujas gavetas se guardam papéis? Pois é assim a maneira do tal edifício da Cruz. Os franceses chamam a tal móvel chiffonnier, creio eu; e o edifício da sociedade é perfeitamente semelhante a ele, mas inteiramente feio, porque, além das muitas gavetas e descomunal altura, ainda tem mais torrezinhas, uma cúpula central, uns cocurutos, absurdos e con­traproducentes, que não lhe deixam totalmente ver a sua estética abracadabrante de caixão.

O Rio-Jornal nos informa também de várias coisas sobre esse monumento "gótico". Diz ele: "O edifício planejado, uma vez construído, marcará o início de uma nova fase na vida da sociedade. Seu custo ficará

aproximadamente por 20.000:000$000."

Se o "caixão" da Cruz Vermelha já era pretensioso no seu número de andares, ainda mais se mostra ser, dado que uma coisa não supusesse a outra, no custo. Qual é o edificio público do Brasil que custa isso? Nenhum. Algumas igrejas e conventos do Rio, uma ou outra, podem ser avaliados nisso; mas que tempo levaram a ser construídos? A Candelária, por exemplo, levou mais de cem anos; e verdadeiramente não está acabada.

Ora, Cruz Vermelha!, isto é muito para tua alma! O mesmo jornal ainda nos dá outros detalhes curiosos sobre o formidável "caixão".

Ei-los:

"Ocupando uma área de 6.000 m2, tendo de altura, do subsolo ao último andar, 125 metros, sendo a máxima 142 metros, ele comportará vinte andares, onde ficarão instalados, de acordo com todos os preceitos das construções modernas e exigências de higiene, todo o aparelhamento necessário a um hospital de primeira ordem, desde os mais delicados gabinetes, enfermarias, quartos particulares e de observação, até um grande frigorífico para receber a carne, o peixe, aves, frutas, e legumes, destinados ao consumo de um mês."

O senhor Taumaturgo de Azevedo, que disputa ao senhor Câmara o número de "crachás" universitários; que é doutor em uma porção de coisas; o senhor Taumaturgo de Azevedo devia saber, como todos sabem, que, atualmente, é aconselha­da pelos higienistas de todo o mundo a construção de hos­pitais em pavilhões nivelados. Os motivos são óbvios e estão ao alcance da mais mediana inteligência que tenha a mais mediana cultura. Como é então, que o senhor Taumaturgo (será por causa do nome?) quer fazer um hospital moderno ao jeito dos antigos?

Com tanto dinheiro, ele pode construir a sede propriamente da sociedade e o hospital em lugares separados, tanto mais que ele tem o frisante exemplo do Hospital Central do Exército, maravilhoso entre as nossas coisas chatas, já pela construção, já pelo pessoal, e onde estive dois meses excelentemente, do que tenho muitas saudades. De resto, essas edificações brutas e estúpidas, como quer ser a tal para a Cruz Vermelha, não devem ser consentidas na nossa cidade.

Há quem conteste que o tipo sky-scraper nova-iorquino nasceu de condições peculiares à grande cidade do Hudson.

Não foram determinados pelo subsolo granítico de New York, nem pelo encarecimento progressivo dos terrenos da ilha de Manhattan, onde se acumula toda a intensa vida da imen­sa cidade; entretanto, se não foram tais factores os principais, eles devem ser levados em linha de conta.

Entre nós, porém, nenhum deles pode prevalecer e não devíamos permitir a construção de semelhantes faróis cívicos, em uma cidade semeada e bordada de colinas, morros quase serras, que ainda estão mais ou menos arborizadas e que de­vem estar sempre, dando-lhe a sua beleza especial, o seu cachet de grandeza, e a sua simplicidade de horizontes, os quais nós perderemos, pobres e mesquinhas formigas humanas que somos!, se tais chatezas se vierem multiplicar.

O sky-scraper define o americano. É a arrogância do parvenu e a estupidez do arrivista que não sabe esperar pelo tempo e outras circunstâncias mínimas para ter personalidade. Faz o grande, o desmedido; gesticula, berra, veste-se com cores vivas, arreia-se de brilhantes e pérolas, de todas as jóias, enfim, para parecer fidalgo, poderoso e original. É um estudo a fazer.

Só o tempo faz o que o tempo não destrói; e seremos muito tolos se imitarmos os americanos nas suas idiotices e pretensões com o descomunal.

Se nós tivéssemos um Conselho Municipal, se apelaria para ele. Mas o tal conselho que temos não ama a cidade, nem é composto de gente dela. O único carioca que lá existe e pode ter algum amor pelo Rio de Janeiro, é o coronel Bran­dão; mas esse mesmo é português de nascimento. Os outros são cubanos, mexicanos, hondurenses - gente que, por bem ou pela força, tem de gravitar em torno da republica do dó­lar. É inútil esperar qualquer coisa dessa gente que, não contente de estar sob o guante americano, ainda procura nar­cótico jesuítico para se anular, e o vai impingir às crianças, nas escolas, à força do poder do Estado, julgando legítimo isso, porque sofrera também império semelhante que destruiu nela a rebeldia indispensável ao progresso humano, mas a deixou, em compensação, viver à tripa forra.

Estão se cevando, mas é pena que o seja inútilmente... A antropofagia já passou de moda em toda a humanidade..

Dessa forma, não temos nós, cariocas, que amamos o nosso lindo Rio de Janeiro, para quem apelar e o senhor Tau­maturgo poderá impunemente arranhar - só, não! - furar céu, a menos que Deus não faça, como fez com os atrevidos da torre de Babel; castigá-lo bem castigado! É ainda uma esperança...

Hoje, Rio, 10-7-1919.