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Obras de Manoel Antonio Alvares de Azevedo (1862)/Fragmentos de cartas do autor/26 de julho de 1848

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S. Paulo, 26 de julho.

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Agora segue-se uma poesia. Talvez não gostes da segunda parte pela transiçâo. Mas lê e verás.


I
Era um anjo do céo — de aereas nuvens
N’alvo luar, em sonho vaporoso
Balouçado — suave na tristeza,
Em lago sem rumor, ermo de brizas.

E era a solta madeixa destransada
Sobre as nuvens do collo como um raio
Do sol ao madrugar espreguiçado
De amanhecer por entre as brancas nevoas,
Com que a noite cobriu da terra a somno
— Qual das vagas á flôr esteira d’oiro
Que a lua ao acordar languida estende
— Quaes flòres n’apotheose de Santa
Por mãos de Cherubim nos céos juncadas,
      Loiros como o Oriente.

£ os olhos côr de eco, d’anil tão puro,
N’extase melancolico enlevados.
Os céos mirando em seu scismar virgineo,
Erão flor azulada a quem a aurora
Tremelêa uma perola de roscio.

E amei o Seraphim descido á noite
D’ethereas regiões á minha vida

Qual um raio de luz adamantina,
Multicôr, irisado d’uma auréola,
Desprendido do céo sobre minh’alma.
Qual em quêda palúde á noite, ás vezes,
Uma estrella sósinha vem mirar-se,
Erma nos céos desertos, tal nas trevas
Do viver me era o anjo; — e era uma rosa
Recendente de odores d’outra vida
Melodiosa de canticos d’amores
Que a brisa lhe soprara la no Eden
— Despegada da c’roa d’algum anjo
No remontar aos céos — ainda pura
Dos bafejos das auras deste mundo
— Desfolhada ao cahir em minha fronte —
Que eu amei com amor de todo o peito!

E que importa não saiba a linda virgem
Amores que palpitão-me no seio?
Que importa desconheça ella esse culto
E santo e puro — mystico e suave
A exhalar-me n’alma odor celeste?

Não pudéra ella amar-me — não quizera-o;
Essa flôr sorriria ao ver um verme
A rojar-se sob ella, que adorasse-a;
Esse anjo escarnecêra de piedade
O meu insano amor — indigno eu delle!

Oh! não! emmurchecida, aos pés calcada,
Morra antes no meu peito, qual vivêra
Silente e muda, a rosa d’esperanças
Em sonhos de porvir adormecida
Em tantas noites — a cantar d’amores!

II

E quando murmurar-me ardente em sêde
Meu corpo a referver — n’algum prostibulo,
N’algum indigno amor em gozo indigno
Eu irei esquecer-me — e nos vendidos
Beijos da meretriz — no leito infame
Polluto dos prazeres impudicos
Cansado dormirei, debilitado
Da lubrica vigilia — e assim ao menos
Talvez deslumbrarei essa desdita
De amar sem ser amado que eu padeço!

Dormir co’uma mulber sem ter un gozo
Afóra esse tremer de torpe anhelo
De cão — d’abjecto ser — materia bruta
Sem alma — sem pensar; só impureza!

E depois enjoado revolver-se
No thalamo d’insomnia — desprezando
A mulher mercenaria que por oiro,
Por oiro tão sómente nos abraça;
Que quanto mais se dá mais finge amar-nos;
Cujos labios impuros se ressentem
Inda dos beijos d’hontem — e os prazeres
Os mesmos venderá, os mesmos labios
Prostituidos, publicos, sem brio
Amanhã ou depois a qualquer outro;
Que então palpitará de amor mentido
Com os seios arfando, os olhos langues.
Qual hoje — estremecendo sob o enlace

D’alguem quem quer que seja que um punhado
De moeda ou papel lhe atire ao leito!

E o que hei de eu mais fazer — enfastiado
Dessas flôres sem cheiro, desbotadas,
Dos festões arrancadas, repisadas
No trepidar de orgia desgrenhada
Em vortice a dansar — soltas as vestes —
Ebria — endoudecida — ás luzes pallidas
Das lampadas na festa amanhecidas?

Amor! rosa do Céo! — na terra um sonho...
Prazer! uma illusão — só um desejo
Insaciado, tantalico — e sempre
Tão illudido aqui e tao logrado!

É maçã rubescente — linda frucia
A desprender-se d’arvore madura;
Quando os dentes a mordem amargosa.
Sómente podridão e seccas cinzas —
Repellem-na os labios enjoados!

Mundo de sordidez! cynica essencia!
Infamia e mais infamia! apenas fezes!
Prosaica vida, eu te maldigo, e escarro
Em teus festins brilhantes... mentirosos!

M. A. A. A.



O. D. C.
Ao seu amigo L. A. S. N.


Talvez, como eu disse no principio, não gostes desta ultima parte — não aches muito de teu gosto este byronismo (se é que não denota este épitheto falta de modestia em mim). Isto chama-se subir aos Céos e cahir na terra. São azas de Dedalo — cera que o sol derrete. Além disso tem o defeito de serem um pouco longos
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