Os Retirantes/I/I

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Tinha acabado a missa conventual e só à tarde sairia a procissão de prece: a imagem da Senhora da Piedade no seu andor armado de damasco e festões de flores, carregado por virgens; o Cristo de lividez poética na sua cruz negra e desornada.

A população de B. V., pequena paróquia cearense, achava-se bem, como quem retesa os músculos depois de um pesadelo; espanejava-se num contentamento largo como um romper da alva. A maior parte dos paroquianos estava reunida a rir e a galhofar e acentuava insistentemente o contraste entre o seu aspecto de hoje e o da véspera.

— Olé! - exclamavam uns para os outros. - Você a modo que ouviu o ronco dos guaíbas ou o zunzum da Itaquatiara?

A diferença era de fato enorme. Desde dezembro uma tristeza, densa como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos ao verem a florescência dos cajueiros esperdiçada aos calores crus do estio. Nem um suor de tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina. Começou desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão o apelo para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos e ardentes continuaram a devastar o gado, as plantações e as pastagens, ao passo que os rios e os açudes empobreciam como fidalgos pródigos.

Também as preces, em vez de levantar os ânimos, copiaram a desolação da terra e tornaram-se a ceva mística do desalento. Quando as procissões recolhiam ao som das monodias religiosas, e extinguiam-se os archotes, e apagavam-se as velas dos altares, escureciam igualmente o templo e as consciências. A claridade elétrica do luar, caindo então sobre a comum tristeza, parecia o olhar esgazeado de miséria a magnetizar o povoado.

É que o pânico feriu, de improviso, a energia das populações de sudoeste, assim como a de toda a Província do Ceará. Estatelavam todas ante a perspectiva hostil do futuro, numa resignação de faquir que se imola, e, como se tivessem um prurido de angústias, recontavam-se histórias de outras épocas horrorosamente calamitosas. Demais, a superstição abriu logo as longas asas de corvo e pairou sobre os espíritos acovardados. Um círculo alourado em torno da lua, a queda de um meteoro, as cores do crepúsculo, tudo foi considerado prenúncio da esperada desgraça. O templo substituiu a consolação pela ameaça, a esperança pelo desconforto. Assim é que o vigário Paula, conhecido até então como pouco severo, transformou a calma desleixada do seu olhar numa austeridade fria de juiz; o tom vulgar de suas práticas de outrora numa entoação cava de agouro. As donzelas tiritavam o velo; a sua estola, roxa como o rebordo de uma chaga, e a sobrepeliz, alva como os cogumelos novos, lembravam-lhes o caixão e a mortalha, e a boca do sacerdote afigurava-se-lhes a entrada da cova inexorável.

A paróquia tornou-se um imenso beatério, que se angustiava profundamente ao ouvir explicado, com os pormenores da perversidade, um hieróglifo escrito na memória de todos por um missionário capuchinho. O vigário o repetia pausadamente:

Em 77 muito rasto e pouco pasto; em 78 muito pasto e pouco rasto.

E explicava em seguida:

— É que haveis de fugir de vossas moradas, como a caça acuada, tendo horror ao próprio som das vossas pisadas. A seca, porém, vos seguirá os passos como um cão destro, e para onde quer que fujais, lá encontrareis o desabrigo, a fome e a morte.

Estava-se já em princípios de março, e a fatalidade parecia ratificar a crueza de tais predições. Do alto da colina, em que está a sede da paróquia, com suas casas esparsas pela extensão das ruas embrionárias e pelo contorno da praça; com a sua igreja caiada, sem torres, tendo um telheiro por campanário, viam-se os incalculáveis estragos do verão. Era um espetáculo solene e tristonho. A planície estendia-se amplamente, semelhante a uma cicatriz enorme no meio do verdor sadio das carnaubeiras novas e das grandes touceiras de mandacarus, cujos grupamentos de estolhos semelhavam-se a órgãos de esmeralda encravados na charneca. Os pequenos casais, que apareciam ao longe, com os seus tetos de palha, as suas paredes caiadas, e os currais de pau-a-pique, desertos e negros de estrume, recordavam outras tantas tendas da penúria. O rio Jaguaribe, perdida a abundância hibernal, estava reduzido a algumas poças. As suas ribanceiras descobertas, altas como dois muros; o seu leito despido em vastas coroas de areia, amarelas como o âmbar, pareciam uma vala de cemitério, babando viva gula de cadáveres. Uma nuvem de urubus, que, dividindo-se e subdividindo-se, ora pousava nas capoeiras ou no solo, servia de outros tantos marcos à morte. É que o gado caía por centenas, como num matadouro, ou, faminto e sedento, cambaleava a fraqueza das suas ossadas a roer folhas mortas pela intensidade da canícula.

Foi, pois, com uma violência selvagem que, na véspera do outono, dia de São José, a alegria irrompeu do seio da paróquia. O sertanejo não desarmou a rede nem arranjou o mocó para partir; vestiu-se de gala, porque o verão simulou chegar ao seu termo. Fria e sombrosa madrugada quebrou a monotonia das auroras enfartadas de sol; uma bafagem úmida bruniu a copa empoeirada das árvores e cochichou nos capoeirões sussurros de temporal. As nuvens obesas de chuveiros alegravam como a carranca mais feia na festa dos bobos, e a paisagem tomou o ar descanoado do convalescente a respirar o ambiente oxigenado de uma hora, ainda úmida da rega matutina.

A igreja acompanhou-a na brusca mutação. Já não dobrava como por finados; os sinos, festivamente tangidos, entoavam uma aleluia àquelas vastas ruínas, e os seus repiques prolongados penetravam pelas casas com um ruído jovial de irmãos recém-chegados, sacudindo os sonolentos e acordando-os em sobressalto feliz. Também, à hora da missa, não se via uma população mesta e combalida, mas o povo com a sua alma sonora, enchendo as ruas e a praça de uma prasenteria anárquica.

Cerca de uma hora da tarde, porém, a sede paroquial ficou silenciosa e quase deserta. A multidão, tomando a ladeira norte da colina, escoou-se alvoroçada aspirando os sons de um búzio, três vezes repetidos. Foram como um pedaço de ímã, caído sobre um monte de limalha, aqueles sons cabalísticos; atraíram, arrastaram os grupos, que irresistivelmente correram de encontro a eles. Nem as pessoas mais graduadas, as que não tinham estadiado na praça, puderam conter-se. O próprio vigário Paula, reunido à família do professor público Francisco de Queiroz e à do velho criador Rogério Monte, seguiu alegremente ao encalço da multidão.

Havia neste grupo a dignidade da proeminência social. O vigário com seu chapéu redondo de grandes borlas pretas, a sua batina lilás, colhida na cintura pelos alamares da seda, levava pelo braço, com um passo cadenciado, a filha mais velha de Queiroz. Chamava-se Eulália e era uma rapariga de 20 anos, porte direito como a palma da acácia, andar firme e resoluto, ao de leve sacudido, como o ramo do ingazeiro que molha a ponta na correnteza. Rebentavam-lhe os seios com o vigor pujante da puberdade, tomando o corpinho branco e justo a conformação das graviolas verdes. Deles o colo enérgico tirava a curva das estátuas, e como que a cintura desbastava mais a circunferência de cone truncado junto ao ápice. Coroava-lhe o tronco forte uma cabeça sibilina, sumida artisticamente numa cabeleira negra, farta e lustrosa, enquadrando um rosto oval, moreno, corado e carnudo, recebendo um tom de nobreza principesca dos olhos à flor das pálpebras, vividos, maliciosos, e das narinas graciosamente vincadas. Ia pensativa, contra o seu hábito que era uma ponta de estroinice, desfeita em risadas de uma alegria clara, como as pojaduras de leite.

O vigário, por sua vez, guardava um retraimento cavalheiresco, de quem não quer incomodar. Só de vez em quando demorava o passo, e com uma voz meio autoritária, meio meiga, fazia notar as devastações da seca.

Estava ao natural. Era frio como as pedras de ara, pouco familiar no trato, exceto para com Eulália e o professor, com o qual havia colegiado - bom tempo de que um velho muro guardava a recordação numa frase obscena. O corpo atlético, mas proporcional e correto, ostentava músculos demais, que no entanto não impediam que se lhe sentisse facilmente o estremecimento do coração. O rosto de puro tipo indígena, embutido numa cabeleira dura e corredia, bebia nos negros olhos fundos, extraordinariamente brilhantes, uma expressão entre o escárnio e a piedade. A sua arma predileta era o desprezo, e, quando lhe chegava aos ouvidos alguma murmuração desagradável, movia desdenhosamente os ombros para não se desculpar.

Já em meio da ladeira, Eulália, que se tinha limitado a concordar com o seu companheiro, dirigiu-lhe por sua vez a palavra.

— Quero pedir-lhe um favor - disse. - Durante todo esse tempo de prece, o senhor nunca se lembrou de mim para fazer parte das virgens, que levam o andor de Nossa Senhora. Peço-lhe que me dê hoje um lugar entre elas.

— Não pode ser - respondeu secamente o vigário.

— Por quê? - interrompeu-o Eulália, corando com todo o pudor dos seus 20 anos.

— Por quê? - repetiu ele com o arrependimento no olhar e meiguice extrema na voz. - Os seus ombros ficariam magoados.

— Não, não é esta a razão - respondeu sorrindo ao galanteio. - Eu não sou melhor do que as outras. Irena é mais fraca e não se tem magoado; já vê que posso.

— Mas que pecados tem você cometido para querer fazer este sacrifício?

— Isto é o que se há de dizer, para notar que eu não fui incluída no número das virgens de Nossa Senhora.

— Pois bem - tartamudeou precipitadamente o vigário - diga-lhes que eu não a convidei, porque entre você e a imagem, esta é que deve carregá-la...

Eulália fitou-o assombrada, mas já a frieza natural do vigário havia-lhe extinguido o arrebatamento e um sorriso paternal substituíra o grito do coração.

— Não se entristeça por ninharias, minha filha. Quer ser uma das virgens? Se-lo-á. Está satisfeita agora?

Ela meneou afirmativamente a cabeça, mas conservou baixos os olhos, que tinham descaído num enleio pudico, e pôs-se a demorar o passo para ficar mais próximo da família. Queria evitar que ainda uma vez ouvisse alguma frase que a impressionasse pela afoiteza estranha. Já, em poucas horas, era a segunda vez que o vigário assim se lhe dirigia: em casa, jogando as prendas, conheceu que vinha dele uma sentença que a tornou pensativa: "Está na berlinda porque faz pecar sobre a terra". Agora, num assomo sacrílego dissera-lhe... nem sabia o quê.

Paula, compreendendo que a sua ousadia magoara a companheira, e sem saber como distraí-la, apontou para o cemitério que se estendia ao lado, como um vasto supedâneo de um cruzeiro negro, em cujos braços alvejava uma coroa de espinhos. Próximo à base do cruzeiro branqueava uma carneira toscamente acabada.

— Ali dorme o velho vigário, descansado da sua asma -disse ele. - Lembra-se de que, em pequena, tinha muito medo da sua tosse e dos seus olhos esbugalhados?

Eulália sorriu, olhando para o cemitério como uma criança consolada, e o vigário acrescentou:

— Tanto medo como teve ainda agora de mim, não é verdade?

A moça continuou a sorrir, e as suas feições asserenaram. A voz dos outros companheiros veio envolvê-los, restituindo assim a paz àquele espírito timorato.

Em breve chegaram à planície, e permearam a multidão, que lhes abria alas, cortejando-os e descobrindo-se reverentemente.

— Aí está o que lhes agrada - disse o vigário, assinalando a multidão. - Deus é só para os apertos.

Os sons do búzio estrugiram com toda a sua aspereza selvagem.

Entraram em um barracão vastíssimo, ruína de um antigo engenho que pertenceu ao patrimônio dos Montes. Era um lugar triste como o abandono, e acreditavam que servia de ponto de reunião as almas penadas e de entrevistas de bruxas e demônios.

Muita gente viu aí, por horas mortas, tripúdios tetérrimos de esqueletos à luz de fogos-fátuos, cadenciados por uivos de cães e pios de noitibós. Cavava-se um enorme abismo que substituía o solo do casarão por um ambiente visível, de um colorido luminoso como as chamas de álcool num vaso de cobre. Então, como a poeira no raio de sol coado por uma fresta, a aluvião de fantasmas, movendo os maxilares num cântico sem eco, ondeava, baralhava-se, passava daqui para ali, e tomava a catadura marcial dos guerreiros nos baixos-revelos assírios. Depois vinham meiguices e ameaças, atitudes humilhadas e blasfemas, calmas de lago e cóleras de fera.

Não era também raro contar que se tinha ouvido, à noite, o estrépito soturno de um desmoronamento. Sentia-se o cavo som do baque das paredes, e depois o prolongado estralar de telhas que se quebravam. E toda a gente acreditava que era o Engenho mal-assombrado que tinha vindo ao chão. No entanto, no dia seguinte, lá estava ele de pé, com os mesmos buracos no telhado, com os mesmos esteios negros enfileirados como um pelotão de gigantes.

A imaginação popular sancionava estas criações supersticiosas por uma lenda que habitava o isolamento do triste edifício, enchendo-o de par com o vôo das revoadas negras dos morcegos. Narrava a lenda sombria uma festa esplêndida, em que se casavam rufos de adufes e cantigas de violeiros, os trilos das violas com os sapateados e palmas dos dançadores. No meio da festa, porém, uma horda de facínoras, gente dos Feitosas, entrou e, apunhalando o hospedeiro, constrangeu a sua esposa formosa a dançar em torno do cadáver ensangüentado, baldão e ludíbrio dos assassinos. Hoje, as danças dos duendes reproduziam no seu horror aquela cena medonha.

Tal era o lugar em que se achava a multidão, trepada sobre caieiras de entulho das paredes desabadas, que tornavam côncava a superfície do solo. Trouxera-a aí uma curiosidade bárbara, um apetite de desastre e de horror: o espetáculo das cobras com o Feiticeiro.

— Hum! - ponderavam alguns. - Esse demônio bate a bota brincando.

— Que o leve o diabo! - respondiam outros. - Ele faz-se besta com bichos.

— Quem sabe se as cobras têm dentes?

— No Crato houve quem duvidasse e pagou com a vida a experiência.

— Olhem, está-se mesmo a ver que ele tem parte com o diabo - apontavam outros. - Que olhos!

Do meio da grande massa popular destacavam-se dois indivíduos, que havia mais de um mês habitavam a ruína. Um, ainda criança, teria 12 para 13 anos e era robusto, muito esperto, de olhos cheios de vivacidade, boca rasgada entre os lábios grossos, e gengivas vermelhas como cardos, em que se embutiam dentes alvos e sãos; os da frente, no maxilar superior, agudos como os caninos. O outro era um homem de corpo desenvolvido, fisionomia carrancuda, antipática, olhares suspeitosos, gestos untuosos de emboscado, palavra humilde e atenciosa. Levava uma vida misteriosa, sempre em lugares tristes e de má fama. Filho do norte da Província, contavam que, a primeira vez que foi visto, saía da Bajara, a casa encantada que mãos ignoradas cavaram no maciço da Serra Grande, muito espaçosa, com grandes mesas e bancos talhados na homogeneidade da rocha. Quase toda a Província o conhecia e tinha-lhe medo pela sua profissão incrível: brincar com um bando de cascavéis. Chamavam-no por isso o Feiticeiro.

A voz da multidão punha no recinto um sussurro de mosqueiro; as mulheres conchegavam-se, os homens punham-se em bicos de pés e tiravam os chapeirões para não incomodar os vizinhos. O pequeno, o Cabrazinho, conforme o chamavam, pôs-se a intermear o povo e a receber no seu chapéu de couro moedas de cobre. Finda a miúda cobrança, começou o desejado espetáculo, na plenitude do seu assombro.

No meio do barracão havia uma espécie de abajur, feito de um estreito traçado de taquara, dentro do qual podia-se estar de pé, à vontade, e girar numa área de vinte palmos. Para aí entraram o Feiticeiro e o pequeno, ambos carregando gaiolas onde se viam os corpos das cascavéis, grossas como um antebraço atlético, medonhas apesar do seu fino colorido marrom hidrargirado. O pequeno veio depois colocar-se fora, junto à portinhola que servia de entrada, e aí recebia as gaiolas. esvaziadas pelo Feiticeiro, que sacudia no chão os seus venenosos artistas.

O terror começou a invadir a multidão, que silenciou e ficou a olhar embasbacada para aquele ente privilegiado, sereno, embora rodeado pela morte. A musculação forte das omoplatas como que tinha cintilações sobrenaturais; as nuas barrigas das suas pernas esgalgadas pareciam ter concentrado toda a força vivaz da agilidade. As cascavéis fitavam-no com a submissão de cães amigos.

O Feiticeiro rugiu então seu maracá, e aos sons do bater das pedras na esfera da lata, corno que se propagou uma alucinação geral. Os espectadores davam-se vaivéns para se arrumarem em bom lugar; as cascavéis, que estavam enroscadas e como que receosas, davam botes e queriam investir. Mas o maracá parou de súbito, e os oito monstros, raivando nas suas enormes rodilhas, por sua vez principiaram a chocalhar, vibrando as pontas das caudas, conformadas como a extremidade dos sabugos de milho.

O maracá ressoou novamente, instigando-lhes a fúria. Corria-lhes pelo corpo um arrepio de cólera, que lhes dava às cabeças contrações epilépticas, e lhes descerrava convulsamente os queixos, abrindo saída às línguas trífidas e vermelhas, rápidas como relâmpagos. O Feiticeiro, postado junto às malhas da rede, olhava-as com desdém e dizia frases de palhaço, repassadas de escárnio boçal. Os espectadores tremiam e tinham os sorrisos desenxabidos de quem dissimula o medo. Mas os demônios do sertão pareciam recear e apenas continuavam nos seus botes céleres e repetidos, que não atingiam o alvo.

— Coisas ruins! - disse por entre os dentes o Feiticeiro. - E tirando da cinta uma varinha e fustigando-as: - Fora! Não prestam para nada.

O desprezo como que doeu às terríveis envenenadoras. Desenroscando-se e levantando-se ao meio corpo, atiraram-se ao provocador. Neste momento, porém, saltou dentro do circo o pequeno caboclo, e, seminu como seu pai, pôs-se como ele a agitar o seu pequeno maracá, Possessos e furibundos, os monstros acometeram o tememário, impetuosos como se o fossem estrangular.

— Devagar! Devagar! - bradou o Feiticeiro. - Devagar!

O terror tinha invadido até a medula dos espectadores boquiabertos: alguns tentaram fugir; as mulheres tiritavam e chamavam baixinho por Jesus. Nas imaginações exaltadas, viam já estrebuchando por terra a pobre criança, talvez violentada a tamanha temeridade. O pequeno, porém, sorria, enquanto as cascavéis trepavam-lhe pelo corpo e enovelavam-se-lhe pelas pernas, pela cintura e pelos braços. O terror aumentava, a morte afigurava-se iminente; mas as cascavéis, em vez de crivarem-no de dentadas, limitaram-se a lamber-lhe o pescoço e as curvas, com a brandura de um cão a afagar seu dono. O rapazinho, encolhendo-se, assim como quem sente frio, continuava a rir sossegado, dentro de sua túnica de veneno, sonora como um chichard de guizos.

O Feiticeiro aproximou-se então, e, fitando os monstros com o seu olhar magnético, prosseguiu a enfurecê-los pelo rugir do maracá. Como que afadigadas, as cascavéis, longe de se irritarem, deitaram as cabeças submissamente. Então o Feiticeiro, semelhante ao hortelão desentrançando videiras, pôs-se a desenleá-las e a fechá-las nas gaiolas. Duas apenas, as maiores, ficaram fora, prontas como duas armas engatilhadas.

Depois que o rapazinho saiu do circo entre os aplausos da multidão, o maracá rugiu veementemente, provocando nas duas cobras, gigantescas, cólera de energúmeno com espasmos de histeria. Partiram com setas e, ora acometendo, ora enovelando-se, moviam as línguas nervosamente, começando já a querer morder os próprios corpos.

O Feiticeiro, sacudindo-se cadenciadamente ao som do rude instrumento, numa dança selvagem, resmoneava uma canção lúgubre; os espectadores olhavam com o olhar os pesadelos.

Afinal, o homem sobrenatural acocorou-se ante as duas possessas que o fitavam, agitando-se quase imperceptivelmente, como os gatos, quando face a face se encaram a ensaiar carícias brutais dos seus brutais amores. O instrumento selvagem continuou a espalhar o seu fermento de guerra, até que foi vibrado como ameaça. Num salto rápido e temeroso, as cascavéis galgaram a distância que se lhes interpunham, e com expansabilidade de uma cólera explosiva, agarraram-se aos braços do seu provocador.

— Quem compra miçangas?! gritou o caboclo, com um sorriso mau.

Mas, em seguida, deixando-se cair por terra, gemeu sentidamente:

— Ai! E desta vez que eu morro.

Rompeu então em estrebuchamentos convulsos, compungentes, que não tinham força entretanto para desvencilhá-lo das vingativas dentadas. O pequeno, junto da portinhola, tinha um olhar amedrontado, ao passo que seu pai ia aos poucos diminuindo os movimentos e caindo num relaxamento muscular assustador.

— Está morto! Está morto - gritaram. - Desencantou; fuja quem não quer morrer!

E a multidão inteira alvorotou-se, e acotovelando-se, atropelando-se, fugiu do medonho lugar, enquanto o pequeno, rindo muito, penetrava no circo para desembaraçar os braços de seu pai dos venenosos ornatos.

— Malvados! - disse o Feiticeiro levantando-se. - Deixar-me-iam morrer como um cachorro!

No meio do rebuliço e pânico geral, que esvaziara, como que por encanto, o vasto casarão, deixando-o entregue à sua habitual tristeza de esfinge, só um homem se manteve diferente ao que se passara - o vigário Paula. Durante o espetáculo persistira em seguir com o olhar um rapaz claro, de barbas e cabelos louros, corpo desbastado e esbelto, e cujos olhos insistiam em uma atenção contemplativa ao grupo formado pela filhas de Queiroz e Irena Monte. Em uma das ocasiões o olhar do vigário encontrou-se com o do moço, e este mostrou-se dominado por um vexame profundo.

— Conhece o Augusto Feitosa? - perguntou ele a Eulália.

— Sim, muito - respondeu-lhe a moça distraidamente - já o vi aqui.

Paula concluiu logo que a pertinácia daquela contemplação tinha Eulália por alvo. Lembrou-se de que entre Irena e o rapaz interpunham-se dois séculos de ódio incansável entre as suas famílias; as outras filhas de Queiroz não pensavam ainda em corresponder a galanteios. A sua suspeita, pois, não demorou em tornar-se uma certeza dolorosa, e o vigário ficou sombrio como quem acaba de ouvir as derradeiras palavras de um ente caro.

No jantar em casa de Queiroz, enquanto os outros, mastigando com o apetite sertanejo grandes pedaços de assados, riam comentando o espetáculo, ele se conservava mudo a olhar indiferente.

— Estou incomodado dos nervos - pretextou para explicar a tristeza.

À tardinha, quando na igreja distribuiu os lugares do andor da Virgem, ao passo que se dirigiu a todas com meiguice, dizendo palavras amáveis, ao chegar a Eulália, os seus olhos fuzilaram, e foi com um tom repreensivo e um gesto de contrariedade que lhe disse bruscamente:

— A senhora também.

Ela o ouviu com estranheza, mas agradecida: não seria apontada, estava entre as virgens de Nossa Senhora. E sentia-se feliz caminhando para esse lugar de honra.

A procissão desfilou esplêndida no seu luxo de fé e contrição, sob os olhos do vigário que espiava de preferência o andor da Virgem, sobre os ombros de quatro donzelas. Entre elas figuravam Irena e Eulália, esta agora livre do olhar contemplativo de Feitosa. Paula estava tranqüilo, mas de repente parou e, brandindo o crucifixo que tinha entre as mãos, resmungou com uma entoação angustiada:

— Ainda aqui, e eu não posso matá-lo!

Esta explosão de cólera tinha sido provocada por Augusto Feitosa, que se colocara ao lado do andor, e, contrastando com a fúria do vigário, abandonava-se à grande paz da multidão, que percorria devotamente as ruas do povoado.

Era um espetáculo imponente de singeleza; a crença mergulhava os espíritos num enlevo, que era como um esquecimento da vida, uma aspiração infinita de um sono profundo, como deve ser o dos arcanjos na tepidez das suas asas brancas, na calma da bem-aventurança. Os cânticos, com as notas finais muito prolongadas, trêmulas de contrição, aumentavam esse gozo suave, abafando os ruídos do vento nas árvores e os mugidos tristes das boiadas famintas das cercanias.

O crepúsculo trepou em vão pela face da sombra a ostentar o seu corpo vermelho como um campo de recente batalha, e em vão nele dissolveu os tons variegados, vivos, de cambiante indescritível. A alma do sertanejo, deixando escoar toda a sombra que, havia três meses, a escurecia, empanava todo esse brilho, toda essa grandiosa ostentação fidalga e caprichosa de colorido e luz. Para ele se conservava ainda a escuridão promissora, cheia de encantos para sua imaginação, como as faces da rainha de Sabá para a delirante paixão do rei-poeta. A treva era um prêmio da sua fé, a condensação das suas preces tristonhas, e estas ainda ele as conservava inteiras e vivazes.

Não via senão as imagens do Cristo e da Virgem, e estas exalavam tanta doçura, tanta consolação, de seus olhos amortecidos pela dor, das suas faces maceradas pela resignação, que era impossível alguém pensar nas ameaças temerosas do verão.

Mas, ao dobrar uma das esquinas, a procissão quase que recuou. Estava de pé um homem, alto e magro, dessa magreza que é o extrato da robustez. Seus olhos negros, esbotocados, como grandes laivos de sangue, tinham a vivacidade convulsiva da loucura; os cabelos grandes, emaranhados e muito grisalhos, atufavam-se sobre a cabeça, como um turbante de estopa. Descalço, com as roupas estilhaçadas e sórdidas, esse homem parecia um vômito da penúria deposto aí para envilecer a devoção.

— Mau, mau - rosnava-se -, vizinhança de doidos é como traseira de poldro xucro; cuidado! - diziam os fiéis, desviando-se dele receosos.

— Coitado! - murmuravam as mulheres - Como anda agora desprezado o pobre Joaquim Maluco! A gente não sabe para que tem filhos.

— Qual coitado nem meio coitado - respondia-se-lhes. - Está com o diabo no corpo: te esconjuro!

Hirto, embasbacado, a alguma distância das casas da rua, braços cruzados sobre as costas, imóvel como uma estátua, o doido contemplou por largo espaço o desdobramento luminoso do préstito; mas, quando passou o primeiro grupo de virgens, vestidas de branco, com as cabeças cobertas com toalhas alvíssimas, sobressaltou-se e, fundindo em lágrimas, rompendo em soluços, ajoelhou-se com as mãos postas levantadas sobre a cabeça.

— São os anjos - repetia o desgraçado -, são os anjos que vêm buscar minha filha.

A sua voz, com a inflexão despedaçada do desespero, mudou o temor geral em compaixão; todos esqueceram a antipatia supersticiosa para homologar a sua angústia.

— Não se esquecerá nunca, o desgraçado! - diziam os paroquianos.

E contavam o caso baixinho aos que não sabiam:

O velho era o Joaquim Mateiro, honrado como os que o são. Um dia soube-se na sua casa que a filha mais velha estava grávida e confessava que o seu amante era o defunto vigário, que a seduzira pela quaresma, ao confessá-la no dia das Dores. O Joaquinzinho, irmão da seduzida, calou-se e saiu com a sua espingarda de caça. A matriz estava aberta e o vigário celebrava a missa, já no ponto de levantar a hóstia. Impelido pela alucinação, o moço levou a arma ao rosto e desfechou um tiro contra o vigário, mas a bala apenas varou a hóstia e foi cravar-se na imagem de Nossa Senhora, que estava em frente. Desarmado, perseguido, doido de indignação, o moço correu até a casa, e, no meio da estupefação geral, armou-se com a sua faca de mateiro e cravou-a até o fim da lâmina no coração da irmã. O suicídio concluiu essa tremenda tragédia, e o pai, não podendo resistir a tamanha dor, enlouqueceu.

Os grupos de virgens continuaram a desfilar, e o velho, sempre de joelhos, repetia a sua frase de alucinado, sentida e comovente. Subitamente, porém, levantou-se e, caminhando até o meio da ala, atirou para o andor da Senhora da Piedade uma blasfêmia horripilante:

— Parem; os anjos da minha filha, os anjos de Deus não devem carregar esta alcoviteira do vigário. Parem, parem!

— Virgem Mãe de Deus! - bradaram centenas de vozes.

— Perdão, perdão!

— Mãe de Deus, não! Não! - gritou o doido. - Foi ela, a malvada, quem disse à minha filha: "vai, escuta o vigário".

Os cânticos cessaram, e a massa popular inteira caiu de joelhos, enquanto um grupo arrastava para fora o doido, que se debatia com a força de um tigre uivando amordaçado por mão possante.

As claridades do sol posto bruxuleavam no ocaso como uma fresta iluminada por onde algum ente sobrenatural espiasse para a terra. Reinava um silêncio tumular em torno das imagens, que pareciam mais tristes.

Agnus Dei qui tolis peccata mundi - cantou por vezes o vigário, com voz trêmula e comovida, até que o povo lhe respondeu com uma entoação dolorosa:

Miserere nobis.

Passou finalmente o estupor e a procissão prosseguiu, envolta em cânticos tristes, repassados da fé ardente que a violenta comoção havia produzido. Sentia-se a contrição profunda dos espíritos no tom das singelas melopéias, que buscavam dar à Virgem um desagravo solene; e foi sob o influxo deste sentimento que o préstito entrou no templo, já noite fechada, à luz ondeante dos archotes.

Soprava esperto vento de leste, pondo um farfalho tépido nas gravioleiras dos quintais. A pardacenta homogeneidade das nuvens rompera-se em grandes rasgões, onde luziam estrelas com o alegre contraste das moitas de mimoteias no escuro dos brejos. Dir-se-ia, enfim, que desde o crepúsculo tinha cessado a hospedagem divina, tanto o aspecto do céu prognosticava agora a volta dos luares imaculados e dos dias ardentes, de um esplendor perdulário.

Mas a cegueira benéfica da fé adiou a dolorosa desilusão. Embebida nas harmonias acariciadoras dos salmos melancólicos, torturada pela cena do agravo da Virgem, mas certa do perdão, a multidão volveu às suas moradas sem reparar que o dia de São José tinha passado sem chuva. A contrição e a esperança enchiam-lhe o pensamento.

O vigário, porém, saiu da igreja sombrio e intratável, sem ter feito prédica.

— Tenho o inferno na cabeça - disse ao sacristão. - Arrebento.

— Como não, sr. vigário? Aquele endemoninhado...

— Sim, o endemoninhado; mas há piores do que ele, e não obstante vivem.

Quando chegou a casa, o seu coração de misantropo sangrava como as veias de um estóico dentro do banho suicida. Os movimentos automáticos traiam a inconsciência do delírio; as pupilas negras nas córneas avermelhadas lembravam manchas de gangrena e pareciam querer saltar das órbitas. Estouvado e brutal atirou com o chapéu sobre a mesa; bateu com as janelas, e pisando forte e compassadamente, pôs-se a passear com uma regularidade de pêndulo. A mobília pobre de jacarandá lustrado, com o seu canapé forrado de sola, parecia ter medo. A mesa grande, no meio da sala, como que recuava diante dos seus passos. Um pequeno, que vinha sempre ajudá-lo a despir-se, entrou e, sem ousar interrogá-lo, saiu deixando um castiçal sobre a mesa.

Só, estrangulando-se com o seu despeito, o vigário, com o olhar fixo de um gato à espreita, andava, de extremidade a extremidade da sala, de quando em quando segurando a batina, sacudindo-a como um tigre os varões de ferro da sua gaiola.

De repente, porem, parou, levantou os punhos cerrados e a cabeça com uma expressão compungente de desespero e de angústia. Como se pulsos de aço o impelissem e subjugassem, cobriu o rosto com as mãos espalmadas e deixou-se cair sobre uma cadeira, com a fronte sobre a mesa.

— Sr. vigário - murmurou da porta o pequeno - mandam chamar vosmecê da casa do sr. Queiroz.

— Diga que estou doente; não posso ir a pagodes. Não me traga mais recados; safe-se.

O pequeno, estremecendo de susto, retirou-se de pronto, mas, antes que tivesse chegado à porta da rua, ouviu de novo a rude voz do seu amo, já menos colérica:

— Ouça; pergunte de quem trouxeram o recado.

— Da sinhá Eulália - respondeu de fora uma voz de mulher.

— Estou doente - repetiu. - Demais não faço falta - e sacudindo a cabeça -; quer divertir-se à minha custa. Víbora!

A última palavra foi proferida com um engasgo de cólera demente, e o vigário, como que admirado de si mesmo, cruzou os braços sobre o peito e ficou a olhar estatelado.