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Robert Helling | 67

seita religiosa; mas não é bem assim. O povo brasileiro vai muito à igreja, mas não é religioso em sentido mais profundo; seu sentimento religioso dispara, ele quer ver milagres, milagres todo dia, e literalmente espera por milagreiros, os quais acolhe, facilmente convencido e sem qualquer desconfiança. Além disso, o povo é muito supersticioso, o que bem faz com que velhos mitos ainda assombrem a maioria das mentes e se perpetuem, junto às crenças dos nativos, nos vários costumes. Dessa confusão de reminiscências de antigos cultos surge a peculiar mistura religiosa estranha a nós e que, para "milagreiros", constitui um solo extraordinariamente fértil.

Esses milagreiros, conhecidos como monjes,[1] são, de modo algum, trapaceiros ou pessoas inescrupulosas que encobrem suas pretensões materiais por meio de subterfúgios religiosos, mas sim acreditam eles mesmos em sua missão divina com uma convicção inabalável. Muitas vezes eles sofrem de epilepsia. Têm visões, sonhos premonitórios, nos quais, segundo o que se diz, aparece a Virgem Maria ou São José ou até mesmo o próprio Deus, com o intuito de transmitir-lhes a missão de melhorar o mundo. Eles relatam esses sonhos milagrosos aos parentes e conhecidos, os quais organizam então, como é de costume, uma grande "rezada”, assim chamado o momento de reza, a partir do que tem início geralmente uma pequena comunidade. A notícia do surgimento do novo monje se espalha então com extrema rapidez pelas redondezas e mais além. Não é raro ser o acaso favorável ao milagreiro, logrando curar alguns supostos doentes tocando-os com as mãos; a cura se encontra certamente, em boa parte, também na imaginação do doente, o qual se deixa facilmente sugestionar pela forte personalidade do monje. E então estão consolidados fama

 

  1. Refere-se às figuras conhecidas na região como "monges” e que tiveram papel importante na deflagração da Guerra do Contestado. O termo monge, nesse caso, não se refere a uma formação religiosa tradicional, mas a uma espécie de título destinado a homens “santos”, curandeiros ou bons conselheiros. Farta bibliografia estuda o fenômeno dos monges João Maria que percorreram a região. Vide MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. da Unicamp, 2004. p. 163-198. O monge que mais diretamente se relacionou ao conflito do Contestado foi o monge José Maria, que Helling refere mais adiante. Em sua visão, tais figuras seriam a porta de entrada para as práticas religiosas que denomina “fanáticas”, que por sua vez levariam ao banditismo. O próprio termo “fanático” carrega um peso negativo e preconceituoso, de tal forma que os estudos atuais sobre o assunto evitam seu uso. (NdH)