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76 | 40 anos no interior do Brasil: aventuras de um engenheiro ferroviário

os olhos fundos, vinha cambaleante e jogou-se na cadeira colocada para ele. Recebeu logo todos refrescos imagináveis, de modo que pôde recuperar as forças depois de algum tempo e já se encontrava em condições de relatar o que ocorrera.

“O que aconteceu em São João?”, perguntei.

“São João queimada, telegrafista morto, diretor da estação ferido!”, exclamou ele.

“Mas o que são dos nossos nas Casas de Turma?”

“Em torno de vinte mortos; o resto fugiu para a floresta.”

“E como você chegou até aqui?”

“Em Calmon, tiro no braço, a noite na floresta, a pé até São João... Lá já estavam os Fanáticos, tiro com bala de Mauser através do pulmão, a pé pela floresta até Galícia, então com o vagonete da ferrovia até aqui.”

“E do que viveu nesses três dias?”

“De raízes e frutinhas silvestres.”

“Qual é, mais ou menos, o número de Fanáticos?”

“Segundo a senhora Schiena, cujo marido eles mataram diante de seus olhos, são 194.”

“A senhora Schiena está aqui?”

“Sim, com seus três filhos.”[1]

Para poupar o coitado, não o interroguei adiante, mas sim deixei-o aos cuidados do médico. Então levantei-me a procurar a senhora Schiena. Ela era uma italiana determinada que, com o seu marido, tivera uma pequena loja e um restaurante em São João. Assim que me viu, levantou, lamentosa, as mãos e clamou: “Maria santíssima! Senhor Roberto, que desgraça!” E, sendo interrompida pelo constante soluçar, narrava o desenrolar dos fatos:

“Há dois dias por volta do meio-dia, os Fanáticos se esconderam no mato alto e avançaram sorrateiramente até estarem a uns trinta metros

 

  1. O assassinato do comerciante Luís Schena chamou bastante atenção na época. Dono de um hotel e uma casa comercial na estação São João, segundo relatos foi morto a facão na frente da esposa e filhos. Grafado nas fontes de diferentes maneiras, o formato “Schena” foi utilizado por uma filha em uma entrevista, muitos anos após o ocorrido. (NdH)