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A NOVELLA SEMANAL

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Como queriam bem aquelle velhinho, cuja imagem se lhes associava no espirito á idéa, de boas guloseimas!

Além disso, vovô não era como todos os homens; era mais «complicado», carregando comsigo maior numero de coisas que lhes serviam de brincos: a boceta de rapé, o bengalão, o relógio, os óculos...

Os netinhos amavam-no e elle os adorava.

Era de ver o gosto com que tomava nos joelhos um delles!

Fosse embora a mais disforme das criaturas elle o contemplava absorvido em êxtase, exclamando :

— Como é galantezinho!

— Tão bondoso o vovô! e tão esquecido!

Ao sahir deixava sempre qualquer coisa e essa qualquer coisa eram quasi sempre os óculos.

Ao afastar-se, gritava um dos petizes:

— Vovôzínho ! os oculos!

E emquanto a criançada abria um côro de risos, elle os tomava com mão tremula murmurando:

— Esta minha cabeça! Tudo me esquece.

*

Um dia não houve repartição de balas.

E' que o vovôzinho morrera.

Tão-frágeis essas criaturas amadas, cujos cabellos o inverno da vida embranqueceu ! Um sopro as leva, e, preenchendo o espaço da casa onde havia uma creatura animada, resta somente uma recordação melancolica.

Foi a primeira vez que não houve repartição de guloseimas.

Levaram os netinhos o vel-o.

Quanta coisa a estranhar naquelle dia!

O vovô que nunca acordava, estirado na marqueza da sala da visitas; pessoas que choravam, outras que entravam e sahiam, pisando de mansinho.

A Dusica, netinha de três annos, arregalava os olhos candidos, sem comprehender.

Sua sô-impressão nitida era a inveja que lhe causava o canivete novo do Mello, único meio encontrado de consolal-o da magua inconsolavel que lhe causava aquella desgraça.

No mais, em sua cabecita de anjo, tudo era confusão.

Por quê mettiam o bom avô num longo caixão negro ? E depois, por que o levavam ?

Muitos homens descobertos sahiram da casa, carregando-o comsigo.

Dusica, sorprehendida, vagueava em torno o olhar candido.

Viu então sobre a mesa um objecto esquecido; e como de costume, correu á porta gritando :

— Vovôzinho ! os óculos !

GODOFREDO RANGEL.


O TIO DA ESCÓCIA (A meu irmão Cândido Drummond)

Eu — sem modéstia e sem pezar o declaro — bem sei que não possuo o que propriamente se ,chama um nome literário, posto que tenha fie-, quentado os prelos com uma assiduidade de que, sem duvida, se hão de lembrar, em tempo, os meus biographos. Não é que também não conte as minhas glorias ; conto. Uma tarde^ na roça, ouvi uns versos meus recitados por um bando de moças a passeio por uma alameda. Se bem me lembro, já tenho urna ou duas descomposturas do "Apóstolo" e de outra folha catholica. Emfim, com algum esforço, e revolvendo bem o passado, podia ainda enram a r outros louros. Pois bem: valesse muito mais o meu nome que eu sem pena o trocaria, como .hoje. A explicação deste acto encontra-se numa noticia ha rnezes divulgada pela imprensa: — na Madeira, naquella ilha com que todos sympathisamos pela sua exportação engarrafada, estavamse habilitando herdeiros de uma fortuna colossal, deixada por João Drummond, um fidalgo de sangue real, um emigrado político da Escócia. Ora, este homem illustre era, nem mais, nem menos, tio deste que se tinha por obscuro plebeu. Eu já sabia, por tradições de família, que me girava nas veias o heróico sangue escocez. A verde Erín! já, muito antes da herança, eu estremecia de orgulho filial imaginando que ainda provi-, nha d'aquella raça de bardos montanhezes; e, como bom descendente de Ossiah, tinha um fraco pelos nevoeiros. Hoje não! vejam os senhores bardos se têm outro descendente! olha quetn! uns- miseráveis, que talvez fossem até salteadores 1 Nós descendemos dos Drummond, senhores de Stogbal na Escócia. Pu ro sangue real! Se não fossem certas prevenções, que nos ficaram dos nossos tempos de plebeu e republicano^ escreviamos ao imperador chamando-lhe primo. E isto mesmo com certa generosidade: o nosso sangue é muito mais azul: da casa de Bragança dizem umas coisas, que nunca se atreveram a murmurar da nossa, de que Walter Scott fala tantas vezes.