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Como queriam bem aquelle velhinho, cuja imagem se lhes associava no espirito á idéa, de boas guloseimas!
Além disso, vovô não era como todos os homens; era mais «complicado», carregando comsigo maior numero de coisas que lhes serviam de brincos: a boceta de rapé, o bengalão, o relógio, os óculos...
Os netinhos amavam-no e elle os adorava.
Era de ver o gosto com que tomava nos joelhos um delles!
Fosse embora a mais disforme das criaturas elle o contemplava absorvido em êxtase, exclamando :
— Como é galantezinho!
— Tão bondoso o vovô! e tão esquecido!
Ao sahir deixava sempre qualquer coisa e essa qualquer coisa eram quasi sempre os óculos.
Ao afastar-se, gritava um dos petizes:
— Vovôzínho ! os oculos!
E emquanto a criançada abria um côro de risos, elle os tomava com mão tremula murmurando:
— Esta minha cabeça! Tudo me esquece.
Um dia não houve repartição de balas.
E' que o vovôzinho morrera.
Tão-frágeis essas criaturas amadas, cujos cabellos o inverno da vida embranqueceu ! Um sopro as leva, e, preenchendo o espaço da casa onde havia uma creatura animada, resta somente uma recordação melancolica.
Foi a primeira vez que não houve repartição de guloseimas.
Levaram os netinhos o vel-o.
Quanta coisa a estranhar naquelle dia!
O vovô que nunca acordava, estirado na marqueza da sala da visitas; pessoas que choravam, outras que entravam e sahiam, pisando de mansinho.
A Dusica, netinha de três annos, arregalava os olhos candidos, sem comprehender.
Sua sô-impressão nitida era a inveja que lhe causava o canivete novo do Mello, único meio encontrado de consolal-o da magua inconsolavel que lhe causava aquella desgraça.
No mais, em sua cabecita de anjo, tudo era confusão.
Por quê mettiam o bom avô num longo caixão negro ? E depois, por que o levavam ?
Muitos homens descobertos sahiram da casa, carregando-o comsigo.
Dusica, sorprehendida, vagueava em torno o olhar candido.
Viu então sobre a mesa um objecto esquecido; e como de costume, correu á porta gritando :
— Vovôzinho ! os óculos !
GODOFREDO RANGEL.