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A REVISTA

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Os caprichos da sorte

GODOFREDO RANGEL

— Meu mal—monologava o coronel Marcilio, trotando em sua besta, rumo do sitio das Codornas—foi a minha imprevidencia. Unica e exclusivamente. Não culpo o Aurelio, meu socio. Eu era de natural confiante e simples o elle ganancioso e astuto. E seus defeitos não me eram encobertos. Não fez mais do que obedecer a seu pendor irresistivel. Todos avisavam-me: « Cuidado com o Aurelio, que um dia te dará um tombo.— E eu, por um mixto de fatalismo e de indolencia, ou melhor, por indolencia apenas, que é ella que nos põe fatalistas, deixava que as cousas continuassem a correr por si. Previ este desfecho, mas nada fiz para evital-o—o que é tambem um modo de ser imprevidente. Era logico que entre dois temperamentos como os nossos se estabelecerse como um systema de syphão... O ramo maior era meu socio. Houve para este um escoamento de fortuna... E o tombo agourado veio. Escarrapachei-me. Estou pobre. E indirectamente minha ruina enriqueceu o Aurelio.

O coronel Marcilio fez um gesto de melancolica resignação, como se estivesse a explicar-se com um interlocutor invisivel. E a besta trotava, monotonamente, pela estrada do sitio.

E o curioso, continuou o cavalleiro em seu soliloquio, é o estado de espirito em que os acontecimentos me puzeram. Incapaz de cogitar em uma resolução salvadora. Para meu caso não ha, provavelmente, resoluções salvadoras. E isto traz-me uma sensação de quebranto de animo, de debilidade sentimental, incutindo-me como uma piedade vaga por tudo e por todos—pelo desagazalho em que vão dormir estas avesinhas que oruzam o céo, pelas folhas de bananeiras retalhadas pelo granizo; sinto a cada passo desejo de apear-me do animal para salvar, cuma poça d'agua. um insecto agonizante, ou erguer as folhas machucadas de um pé de grama pisado pela pata de um cavallo... e um desejo commovido de abraçar-me a tudo que vejo, consolando os troncos de serem velhos, as flores de serem ephemeras... E esse meu desejo de consolar é de certo, tambem, necessidade de consolação. Tolice! Fraqueza sentimental!

Era ainda a mesma «fraqueza», como lhe chamava, que o levava ao sitio do Severo, talvez seu unico amigo verdadeiro. Os outros abandonaram-no, após a derrocada.

— Muito razoavel tambem essa esquivança, meditou elle. O que entretem a amizade, são as pequennas ou grandes mercês que entre nós permutamos, e o rico está em mais condições de as fazer, ao passo que ao pobre escasseiam-lhe os meios. Sem essas mutuas dadivas, que tambem podem ser espirituaes (em quão pouco, porém, se estimam estasl) não póde subsistir o affecto. Succede como no amor, que é a permuta do prazer. Na affeição dos paes é que existe algo immutavel e desinteressado... Mas é porque obedecem a um cégo impulso, ao invencivel instincto que leva todos os seres vivos a proteger a sua prole. A amizade é absurda, anti-natural, se não a inspira o interesse. E eu não posso mais ser bom amigo. Empobreci.