Página:A Revista (1925-1926).pdf/152

Wikisource, a biblioteca livre
30
A REVISTA

E incoherente com os seus raciocinios, o coronel Marcílio, ex-millionario, ex-chefe politico, homem culto e generoso, ia em demanda do conforto da amizade sincera, no sitio das Codornas.

Em sua desdita, parecia-lhe que o mundo acabára, revolto por um cataclysmo e que apenas sobrevivia a casa de seu amigo, como um oasis no meio da desolação universal.

Foram confrontantes de terras, amigos de escola, companheiros na politica, e, quantas vazes, no meio das attribulações passadas, se valeram reciprocamente, quer material, quer moralmente, ou, se algum delles o necessitava, com a luz guiadora de um conselho/

Recebiam-no alli carinhosamente, rodeando o, tanto o compadre como a velha esposa e demais pessoas da casa, das maiores attenções.

Sentia-se bem entre elles, como em seu proprio lar. Sempre diziam- lhe: «Quando o compadre apparece, para nós é como se fosse dia de festa...» Qualquer trabalho que estivessem a fazer, deixavam-no immediatamente, mostrando tão boa vontade de ser lhe obsequiosos, que Marcilio espaçava suas visitas, para não turbar-lhes a labuta costumada. Esse era o dla do Severo abrir certo armario, onde eram recatadas preciosas alfaias, e de retirar dalli uma celebre chicara toda dourada, que conservavam ainda envolta no papel com que viera da loja, annos antes.—Aquella chicara era historica, explicava Severo. Nella haviam bebido unicamente o presidente do estado, quando estivera a percorrer a zona, o bispo D. Eduardo e o querido compadre... E, quando vinha nabandeja, tinha como um emproamento de fidalga, ao lado da tigeliinha azul com que serviam o café ao Mathias, outro vizinho de terras que sempre alli portava, e que não tinha, como o presidente, o bispo, ou o coronel Marcilio, titulos sufficientes qara receber a excepcional distincção.

E ao evocar a affeição tão d'alma, daquelles velhos amigos, o coração de Marcilio sentia-se confortado. Elles já saberiam do desastre: Quanto pezar lhes não teria causado!

Vinha na estrada um matuto conhecido, trazendo na cabeça um feixe de lenha. Passando pelo cavalleiro, posou no chão o feixe, para tirar-lhe o chapéo.

— Bom dia, «sô» coronel Marcilio.

— Não sou mais coronel, Anastacio. Hoje o meu titulo é «sô». Perdi o que tinha, estou mais pobre do que você...

O caipira escancarou os olhos e a bocca.

— Pois devéras!

— E' a verdade. Adeus, Anastacio!

— Até outro dia, sô Marcillo!

O cavalleiro distanciou-se ante os olhos sorpresos do rustico, que o acompanharam até sumir-se ao longe; então Anastacio repoz o feixe na cabeça «maginando» sobre as reviravoltas da sorte, e perguntando-se como poderia o fazendeiro estar mais pobre que elle, se ia tão bem vestido e montado em tão bom animal.

Ao avizinhar-se do sitio, Marcilio reflectiu:

— Que vim fazer aqui! Entristecer inutilmente com a minha presença aos meus bons amigos...

E agitado, inquieto, sentia-se arrependido e já pensando em voltar. Parecía-lhe que o fim principal de seu passeio não era tanto a ne-