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Mais de duzentos! E todos, mais de duas centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição religiosa da dança, de um costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil.

– Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confetti e velhas serpentinas varridas de uma sacada.

Atrás de mim, todo sujo, com fitas de papel velho pelos ombros, o meu companheiro continuou:

– Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultual. Não há danças novas; há lentas transformações de antigas atitudes de culto religioso. O bailado clássico das bailarinas do Scala e da Ópera tem uma série de passos do culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da reverência sacerdotal, e o cakewalk e o maxixe, danças delirantes, têm o seu nascedouro nas correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da África. A dança saiu dos templos; em todos os templos se dançou, mesmo nos católicos.

O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava desconfiar da sua razão. Ele, entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:

– O Carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem coroado de pâmpanos e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abrem-se; os instrumentos rugem; estes três dias ardentes, coruscantes são como uma enorme sangria na congestão dos maus instintos.