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rua! Onde a expansão de todos os sentimentos da cidade? Na rua! Por isso para dar a expressão da dor funda, o grande poeta Bilac fez um dia:

A Avenida assombrada e triste da saudade
Onde vem passear a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.

E certo poeta árabe, reconhecendo com a presciência dos vates que só a rua nos pode dar a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa, escreveu a celebrada Praça do riso ao nascer da aurora; o riso de cristal das crianças, o riso perlado das mulheres, o riso grave dos homens a formar um conjunto de tanta harmonia que as árvores também riam no canto dos pássaros, e a própria umbela azul do céu se estriava d’ouro no imenso riso do sol..

Neste elogio, talvez fútil, considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante, e mostrei mesmo que a rua é o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor, rua abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de um povo. Todos acotovelam-se e vociferam aí,