Página:A morgadinha dos canaviais.djvu/121

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ses cabellos soltos? Não sabe que o demonio... cruzes! arma com elles laços ás almas das creaturas?

—­Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabellos!... Então, por causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas! É teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu á pequena esses cabellos tão bonitos, é porque lh’os quiz dar. Se quizer, que lh’os tire, eu é que não.

—­Deus cerca-nos de tentações, para que nós as vençamos.

—­Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se os tivesse como os da minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha filha, eu?! fazer d’aquella cabeça de cherubim uma d’essas cabeças tosquiadas, que por ahi andam!

—­Talvez ainda se arrependa!

—­Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras... respeitaveis, como a da comadre; ora então...

A beata, apesar de trazer sempre na memoria o Vanitas vanitatum do Ecclesiastes, não foi inteiramente insensivel ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como para descarregar sobre ella a má vontade com que estava ao pae:

—­Sae-te p’ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar! Deixar assim uma creança fazer uma fogueira d’estas! Nem para assar um boí! É preciso não ter consciencia.

E tirou do lume um pequeño cavaco, para justificar o dicto.

Zé P’reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro recebido.

Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo d’aquella creança, que era de uma organisação nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata uma