Página:A morgadinha dos canaviais.djvu/348

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creança?... as desventuras de um pae?... Ella! Não! E se tu o queres — continuou allucinado, voltando-se para a imagem — e se não podes ser adorada senão assim, é porque és falsa, falsa como a mão que ahi te pintou, falsa como as bôcas que te prégam os milagres. Vae-te!

E no accesso de raiva, que cada vez mais crescia n’elle, fez voar o caixilho, as jarras e os castiçaes pelo ar, e tudo veio fazer-se pedaços no pavimento.

Ermelinda soltou um grito dilacerante e agudissimo ao vêr aquillo. O terror seccou-lhe as lagrimas. Com o olhar espantado, as faces quasi lividas, as mãos juntas, quiz falar, mas não pôde; moviam-se-lhe os labios descórados, mas não lhe saía a voz da garganta.

Cada vez mais cego pelo desespero, o pae já não a attendia. Passou outra vez ao corredor, derrubou, em igual accesso de furia o vaso da agua benta, bradando:

— Vae-te, que estás empestada tambem pelo bafo maldicto da impostura.

Ermelinda lançou-se-lhe aos pés, abraçou-o pelos joelhos para o reter, mas elle não a sentia, e, continuando a caminhar desorientado, quasi a levou de rastos á outra sala.

Ahi, imagens, cruzes, esculpturas, tudo lançou por terra, tudo despedaçava ou rasgava.

N’este impeto de loucura, n’esta cegueira de raiva, não viu a filha que, como se galvanisada pelo terror, ergueu-se arquejante, com os braços estendidos, fazendo esforços para falar, e caindo por fim no pavimento inerte e fria como um cadaver.

Attrahida pelos gritos e rumor que partiam da casa do Cancella, a madrinha de Ermelinda acudiu a vêr o que era aquillo.

Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da scena que descrevemos; ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o Cancella cortou-lhe a fala na garganta.