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á miseria e á ingratidão, e dera á amizade as consolações que a amizade lhe inspirára.

Mas não desfallecêra com tudo isto.

Maior provação lhe estava reservada, porque ha maiores provações para a alma humana, do que todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de subito a estrella que a guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia, dormindo no meio de uma desencantada realidade; privae-a da ideia querida, que havia muito concebêra, que comsigo vivia, que para si guardava, ciosa dos olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada, perdida, louca, contorcer-se em desespero e succumbir.

Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla, é porque é de essencia mais elevada do que a humana.

Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel, aquelle sonho tão chimerico, que a pobre devia estar prevenida para o perder um dia, e julgou que o estava.

Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma chimera, se ella, nas fórmas vagas e aereas que reveste, nos sorrir e namorar, em vão julgamos têl-a por o que verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que a acreditamos realisavel e até realisada.

E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade, sentimos a dor profunda que nos causa a perda de um objecto querido.

Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos apaixonamos d’elle, apparece, para nos seduzir, sob a feição da realidade aos nossos olhos namorados.

E ao revelar-se como impossivel, destróe o coração que o abraça, como Jupiter sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua gloria de deus.

Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de Augusto, sabem-n’o os leitores: era o amor