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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

o que poderia, sem dúvida, ser tido como sobre-interpretação, em que a referência a nomes e ao nomear fica inteiramente eludida, ou seja, elude-se justamente aquilo que expressa a coalescência entre nome e ser, própria da cultura que produziu o texto.


Versos 1-2: A referência, nos versos 1-2, ao céu e à terra constitui um merismo, ou seja, referir-se às partes para dizer o todo (céu + terra = mundo), como também se faz no primeiro versículo do Gênesis hebraico ("No princípio criou Elohim o céu e a terra").


Traduzi šamāmu por "firmamento" por se tratar de palavra paroxítona (em acádio, os versos terminam geralmente em paroxítonas), bem como de termo poético derivado de šamû, "céu".


Hutter propõe que ammatu (v. 2), deva ser entendido e traduzido não como 'terra', mas como 'mundo inferior' (Unterwelt), considerando que na Teodiceia babilônica se procede à relação am-ma-tiš = ´kima` er-șe-tú (´como terra`), este último termo, erșetu, sendo corrente para designar o mundo subterrâneo (habitação dos mortos, cf. Hutter, 1985, p. 187-188). São dois os seus argumentos: a) na tabuinha 6 (v. 40, 44, 46, 60, 79), quando se diz que Márduk pôs os Anunákku e os Igígu "acima e abaixo", o que se afirma é que os pôs "no céu e no mundo inferior"; b) o par de deuses primordial (Urgöterpaar), Apsu-Tiámat, representa a totalidade do mundo ainda não organizado e, quando de sua separação, dá origem ao mundo subterrâneo (Apsu), à terra (feita por Márduk com a metade do corpo de Tiámat) e ao céu (a outra metade do corpo de Tiámat), o que implicaria que o merismo compreendido por šamāmū + ammatum (céu + terra) deveria corresponder aos três planos (céu-terra-subterrâneo ou céu-terra-apsu), o céu e o Unterwelt constituindo os dois extremos (também Foster, 1996, p. 353, traduz ammatu por "netherworld").

Contudo, deve-se recordar que o mundo inferior é correntemente nomeado, em sumério e acádio, por termos que significam também 'terra' —como o sumério 'kur' e o acádio erșetu (cf. HOROWITZ, 1998, p. 268-294). Como, todavia, ammatu não é um termo corrente para 'terra', optei, na tradução, por 'solo', considerando que a situação inicial é a da existência das águas (Apsu e Tiámat), sem que ainda houvesse