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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

assim: a) Láhmu e Láhamu foram engendrados "quando dos deuses não surgira algum", ou seja, são eles os primeiros a quebrar o que se poderia considerar como repouso ou inanição (ou ainda atemporalidade) de Apsu-Tiámat; b) o passo em que são engendrados Ánshar e Kishar toma como referência não algum tipo de temporalidade externa, mas o crescimento de Láhmu e Láhamu, ou seja, trata-se de uma marcação, em termos de sucessão. Naturalmente, tanto para a cosmogonia quanto para a teogonia o fluxo das sucessões configura o que se pode chamar de 'tempo', aqui expresso não em termos abstratos, mas como ocorrências nos corpos dos primeiros deuses, uma espécie de tempo corporificado.


Verso 12: Este verso introduz o segundo par de deuses gerados — Ánshar e Kishar —, havendo duas possiblidades de entendimento: a) eles são filhos de Láhmu e Láhamu; b) eles são filhos de Apsu e Tiámat.


Um argumento de ordem antropomórfica a favor da segunda hipótese é que foram eles engendrados enquanto o par anterior (Láhmu e Láhamu) ainda crescia: conforme Talon, "eles seriam gerados independentemente uns dos outros: enquanto crescem Láhmu e Láhamu, Ánsar e Kishar são criados e lhes são superiores", de modo que o "esquema genealógico" não apareceria "senão com Ánshar, marcando a ruptura com a emergência indiferenciada dos deuses precedentes" — ou seja, antes da geração de Ánu por Ánshar e Kishar, o que havia era uma espécie de "geração espontânea" nas águas primevas (TALON, 1992, p. 4; cf. também GEORGE, 2016, p. 20). Essa é também a leitura de Damáscio (Dos princípios 125, 1), segundo o qual de Tauthé (Tiámat) e Apason (Apsu) nasceu primeiro um filho, Moumin (Múmmu), "e dos mesmos procede uma outra geração, Dakhé [Láhamu] e Dakhós [Láhmu]; então, novamente, a partir deles houve uma terceira geração, Kissarés [Kishar] e Assorós [Anshar]".

A favor do primeiro entendimento, recorde-se que, em 3, 6, Ánshar declara que Láhmu e Láhamu são "os deuses, meus pais". O argumento principal, contudo, a favor da primeira hipótese é que todo esse passo tem como objetivo traçar a genealogia de Ánu — e, por consequência, de Ea e, também consequentemente, de Márduk —, a lógica que dá consistência