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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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a casa, constrói um barco,/ Abandona a riqueza e escolhe a vida" (Ele que o abismo viu, 11, 19-25). Mais à frente, findo o dilúvio, ele próprio declarará a seus pares, os outros deuses: "Eu não revelei o segredo dos grandes deuses:/ Ao Supersábio um sonho fiz ter e o segredo dos deuses ele ouviu" (11, 196-197). Nisso se vê como é ardiloso, o que o põe na categoria de divindades como o grego Prometeu (ver Duchemin, 2000).

Enki/Ea é bastante representado nas artes visuais, com barba comprida, chapéu com muitos chifres e veste longa e plissada. Às vezes jorram de seus braços correntes de água na direção do solo, nas quais se veem peixes. Outras vezes ele se encontra sentado, recebendo oferendas, ou no interior de uma estrutura, que pode ser o Apsu ou o templo em Eridu, o E-abzu, cercado por canais de água (cf. BLACK et al., 2003, p. 75).


Versos 17-20: Na sucessão dos deuses há uma perspectiva progressiva, em termos de capacidade, a qual já fora sugerida no verso 12, ao declarar-se que Ánshar e Kishar se avantajavam com relação a seus pais, Láhmu e Láhamu. É, todavia, com relação a Ea, na passagem em questão, que essa noção se afirma, verso a verso:

a) de seus pais ele é o dominador, šālissunu šuma,
b) ele é de todo agudo, palka uznu — em que o termo uznu ('orelha', 'ouvido'), de acordo com o torneio de linguagem próprio das línguas semíticas, em que é preferentemente o ouvido (e não a vista) que topicaliza corporalmente o canal que mais produz conhecimento, significa 'sabedoria', 'entendimento', 'compreensão', 'consciência', 'atenção' (minha tradução por 'agudo' tenta preservar algo da imagem auditiva do termo);
c) ele é ḫasīsu, um sinônimo de uznu, com os mesmos sentidos (traduzi por 'sagaz');
d) ele é "em força robusto", tradução bastante literal de emūqān pungul, que acrescenta uma superioridade física às mencionadas superioridades intelectuais de Ea;


e) ele é guššuru, muito forte', a que se acrescenta a comparação com Ánshar, pai de seu pai;