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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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outros deuses gerados, ao que tudo indica, por Apsu-Tiámat. O fato de que esses deuses sejam apresentados como atḫû (irmãos ou pares) marca uma diferença significativa com relação aos deuses nomeados, pela inexistência de diferenças de estatuto, em termos de menor ou maior senioridade, maior ou menor importância. Trata-se de um dado narrativo importante: as ações que levarão ao fim (no sentido de final e finalidade) do poema — ou seja, a entronização de Márduk — são desencadeadas não pelos deuses nomeados, mas por essa massa um tanto amorfa dos inominados atḫû ilāni.


Versos 22-24: A primeira informação sobre o incômodo provocado pelos "irmãos, os deuses" focaliza Tiámat, concentrando-se na esfera auditiva e espacial: a) de um lado, o forte alarido que se irradia (šapû, 'ser denso', 'ser alto', encontra-se no modo Gtn, ištappu, que tem sentido iterativo) e a algazarra dura (šu'āri šu'duru); b) de outro, as entranhas de Tiámat e o interior do Anduruna.


Anduruna é aqui, de acordo com Lambert, uma "localização cósmica": num exercício escolar procedente de Susa, afirma-se que é o lugar "onde o sol nasce"; conforme outros registros, um local no mundo inferior, referido como "a grande prisão do Anduruna" (mar-kás rabu šá an-dúru-na) ou "anduruna casa dos destino (a]n-dúru-na bīt ta-ši-[ma-a-ti]) (apud LAMBERT, 2013, p. 470). Note-se que, neste ponto do poema, não existem ainda nem o nascente nem o mundo inferior, motivo por que o mais razoável seria entender que Anduruna seria alguma localização no interior da própria Tiámat ou um modo de referir-se a esse interior, seu karšu, que traduzi por "entranhas" (cf. o CAD, 1956-2010, também 'estômago', 'interior', 'epigástrico', 'útero', 'ventre'), observando-se que tanto karassa quanto Anduruna se encontram na última posição nos versos do dístico, o que parece reforçar a intenção paralelística do autor.

O que traduzi por "algazarra", šu`āru, conforme o CAD, significa propriamente 'dança', o que, no contexto do incômodo de Tiámat, deve ser entendido como a realização de movimentos rápidos e iterativos (cf. TALON, um jogo barulhento'). Com "algazarra dura no interior do Anduruna" eu quis preservar a aliteração do original — šu´āri