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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

imtarşamma alkassunu eliya
urriš lā šupšuḫāku mūšiš lā şallāku
lushalliqma alkassunu lusappih
qūlu liššakinma i niștal nīni

É sim molesta sua conduta para mim:
De dia não repouso, de noite não durmo.
Destrua-se sua conduta, seja dispersa!
Silêncio se faça e durmamos nós!

Este é um tema teológico e um motivo narrativo de especial importância: o sono dos deuses. Do primeiro ponto de vista, parece que é próprio da natureza divina — ou pelo menos da natureza dos grandes deuses — uma certa inércia, expressa em termos de repouso ou sono. Isso não significa que, em determinados momentos, eles deixem de agir, mas que, uma vez que se estabeleça certa ordem, então o repouso é um requisito indispensável de sua existência. Da segunda perspectiva, a dos motivos narrativos, o que se observa é que um deus que não logra dormir age de modo transtornado.

A ocorrência mais antiga desse motivo encontra-se no poema conhecido como Atraḫasīs (séc. XVIII a. C.) — cujo nome original são suas primeiras palavras: Inūma ilu awilum (Quando os deuses como homens). Nele, o sono dos deuses é que dá consistência à trama, que assim pode ser resumida:

a)de início, uma parte dos deuses, como homens, tinha de assumir o encargo do trabalho (cf. 1, 1-2: "Quando os deuses, como homens/ Suportavam o trabalho e penavam na labuta"), a saber, os Ígigi, os quais se encarregavam dos trabalhos agrícolas, envolvendo irrigação e plantio, a fim de que os Anunákki, grandes deuses, pudessem gozar de repouso (cf. 1, 5-6: "Os grandes Anunákki, os sete,/ trabalho fizeram os Ígigi penar");
b)após quarenta anos, os Ígigi revoltam-se e cercam a morada dos Anunákki, à noite, enquanto estes dormiam, cabendo a Kálkal despertar Núsku, a fim de que desperte seu senhor, Énlil (cf. 1, 78-81: "Núsku despertou o seu senhor,/Da cama o fez sair:/ Meu senhor, está cercada tua casa,/ A batalha veio à tua porta");
c)a solução para o problema é dada por Enki: a criação da humanidade, para que assumisse o trabalho dos deuses, o que se faz com a produção, por Mami, a mãe dos deuses, de quatorze protótipos (lullû) humanos, sete machos e sete fêmeas, a partir dos quais a população se multiplica;
d)como consequência,