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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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em português uma palavra bem breve que possa verter , 'fórmula de encantamento'.

Essa fórmula produz nada menos que aquilo a que Apsu aspirava: seu repouso. Os versos 64-65 são enfáticos nesse sentido, explorando o recurso paralelístico do quiasma:

šittu irteḫīšu
sono derramou/inseminou nele
ṣalil tubbātiš
dormiu em paz
ušaṣlilma Apsû
fez dormir Apsu
reḫi šittum
derramado/inseminado em/com sono

Além da palavra 'sono' (šittu) e do verbo 'dormir' (ṣalalu) — ambos usados duas vezes—, o que remete diretamente ao encantamento é o verbo rehû, que tem dois sentidos: a) 'derramar', 'verter' um líquido; b) 'inseminar', isto é, "derramar sêmen'. Nos dois casos, isso implica que o encantamento introduz algo (o sono) em Apsu, a propriedade de uso de um termo relativo a líquidos para explicitar a natureza do encantamento devendo-se ao fato de que o próprio Apsu é água.

Mais ainda: se, como se afirmou no início, além de ser água Apsu é também macho, o que de algum modo implica que era ele que derramava sêmen em Tiámat, a fêmea, para que fosse então gerada a prole de ambos, aqui o processo se inverte, pois, em vez de inseminar, é Apsu quem é inseminado (pelo encantamento de Ea), o resultado dessa inseminação sendo não a produção de algo, mas o mergulho num estado de inanição e improdutividade. Esse motivo narrativo não é estranho a outros mitos de sucessão: na Teogonia de Hesíodo, o Céu (Ouranós), uma vez emasculado por seu filho Crono, afasta-se definitivamente da terra, perdendo sua potência procriativa.

O traço mais relevante, contudo, é que Ea faz nada mais que realizar o desejo de Apsu.


Verso 66-72: Depois de descrever o que se passa com Apsu, o narrador faz com que se lance um breve olhar sobre Múmmu, que se encontra associado àquele desde o início desta passagem: "Múmmu, o mentor,