Saltar para o conteúdo

Página:A saga de Apsû no Enūma eliš.pdf/45

Wikisource, a biblioteca livre
Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

265

Versos 67-69: São cinco as ações a que Ea submete Apsu: a) desatar-lhe os tendões; b) arrebatar-lhe a coroa; c) tirar-lhe a aura; d) encadeá-lo; e) matá-lo. Examinemos cada uma delas e seu significado.


O fato de que Ea arrebate a coroa de Apsû mostra como se trata de uma sucessão no poder, o mesmo podendo valer para o riksu, que em geral se traduz como 'faixa', outro signo de realeza (cf. BOTTÉRO; KRAMER, 1993, p. 607), mas que também admite o entendimento proposto por Lambert, 'tendão', que é o que adoto, por considerá-lo mais pertinente: depois de sedar Apsû, Ea rompe-lhe o tendão e provoca a dissolução dos vínculos que faziam do protodeus um ente ativo, levando-o a assumir (ou retornar a) uma forma passiva (cf. LAMBERT, 2008, p. 38). Note-se que essa é a primeira das ações de Ea, provavelmente a mais importante, pois tem impacto na própria natureza de Apsu, apenas em seguida vindo o arrebatamento de sua coroa, relacionada com sua função como o rei dos deuses.

Terceiro movimento: Ea tira de Apsu a "aura" (melammu). Esta palavra, melammu, é a forma acádia de 'melam', termo sumério que designa o brilho que brota de deuses, heróis e mesmo reis, bem como de templos ou de emblemas sagrados. Muitas vezes se afirma que os deuses 'vestem' sua 'aura' (ou sua 'coroa'), a qual, portanto, pode ser-lhe tirada e, se um deus morre, seu melammu se extingue (BLACK et al., 2000, p. 130-131). Nesta passagem, a natureza da aura enquanto espécie de adereço da divindade fica realçada, pois, diferentemente de nas ações anteriores, não se trata apenas de Ea arrebatá-la de Apsu, pois ele tira-a dele para revestir-se com ela (observe-se que isso se faz antes da morte de Apsu).

Desatar-lhe os tendões e arrebatar de Apsu os signos de realeza e divindade são pré-requisitos para os últimos desdobramentos: encadeá-lo e matá-lo (cf. SONIK, 2012, p. 87). Parece que essas duas ações se entendem como quase simultâneas, sendo para elas que confluem as anteriores, as quais tiram de Apsu seu caráter ativo, enquanto procriador e rei, para mergulhá-lo em passividade: "Ea dá cumprimento, num sentido perverso, ao desejo de Apsu de encontrar descanso, o que o leva