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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

à matança do ser primitivo. A importância de descansar é revertida neste ponto e direcionada contra o ser primordial" (GABRIEL, 2014, p. 123).


Verso 73-74: O cumprimento final de uma ação heroica exige que o vencedor se erga sobre seu adversário, como acontece aqui, configurando seu triunfo. O mesmo se dará, mais à frente, quando Márduk derrotar e matar Tiámat: "Encadeou-a então, sua vida exterminou;/ Seu cadáver lançou, sobre ela ergueu-se" (4, 103-104).


Versos 75-78: Nos dois dísticos finais do episódio, deuses e mundo são reconduzidos a um estado de equilíbrio, o que condiz com a função que Ea desempenha em várias narrativas. Esse equilíbrio é conquistado com a conversão de Apsu num lugar, o que representa uma espécie de preliminar, em grau menor, do que será posteriormente a luta de Tiámat e sua derrota para Márduk: do mesmo modo que mais à frente o cadáver da deusa se tornará céu e terra, isto é, dois terços do mundo, aqui o cadáver do deus vencido se torna um terço dele, o Apsu.


Mais que com relação a Márduk, neste caso a ação afeta especialmente o vencedor, Ea, tanto que, afinal, na conclusão dos trabalhos, é de seu próprio repouso que se trata, ou seja, ele próprio conquista aquilo intensamente almejado por seu adversário. Note-se o jogo de espelhamento (ou substituições), com manutenção da mesma sintaxe: a) Apsu planeja eliminar os deuses, dentre os quais Ea, para gozar de repouso; b) mas é Ea quem termina por eliminar Apsu e gozar de repouso. Em resumo, nos termos de Sonik (2012, p. 90),

o autor do Enūma eliš tem um senso de humor peculiar: Apsu, que buscava destruir os deuses para que pudesse dormir, é posto num profundo sono por Ea, a fim de ser morto, alcançando, assim, antes da morte, o desejo de seu coração (1, 65-66). Depois, tão logo mata Apsu, Ea retira-se ele próprio para seus aposentos, construídos sobre o cadáver de Apsu, e de