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Nunt. Antiquus, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 221-270, 2020

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diz no negativo: antes de haver nomes para céu e terra, antes de haver separação das águas, antes de haver pastagem e pântanos, antes de haver deuses com seus nomes e fados. Condizente com as necessidades de expressão do estado inicial, a maior parte dos versos prescinde de verbos ou usam-nos na forma estativa (que expressa estados).

O modo como se insiste na ausência de nomeação – para o céu, a terra e os deuses – responde a uma coalescência entre nome e existência. Para López-Ruiz, de uma perspectiva comparatista, o que caracteriza o estado pré-cosmogônico no Enūma eliš é justamente essa:

ausência de nomes, que implica em ausência de linguagem e, assim, por extensão, ausência de pessoas ou deuses que articulem uma linguagem. A ideia de ‘criação por nomeação’, que reverberará no Gênesis 1 [da Bíblia hebraica], está também presente na cosmogonia egípcia, especialmente na teologia menfita, em que Ptah traz o universo à existência ao nomear todas as coisas, usando seu coração e sua língua. Isso constitui uma ontologia (ou epistemologia) de pleno direito, segundo a qual coisas não existem antes de receber um nome. […] Observe-se também o contraste entre essa ausência inicial de nomes e a abundância de nomes de Márduk, cujos cinquenta nomes são recitados como a culminância do poema. Ele é não só o deus com mais nomes, mas também o principal criador, na segunda parte deste texto, que foi claramente elaborado para exaltá-lo. (LÓPEZ-RUIZ, 2012, p. 33)

Também para Foster “o poeta evidentemente considera a nomeação um ato de criação e uma explanação de algo já trazido à existência”, de tal modo que a “análise semântica e fonológica de nomes poderia levar ao entendimento das coisas nomeadas” (FOSTER, 1996, p. 351).

Esse aspecto foi inteiramente assumido por Lambert, que traduziu assim os dois primeiros versos: “When the heavens above did not exist,/And earth beneath had not come into being” (LAMBERT, 2013, p. 51),