Página:Ambições (Ana de Castro Osório, 1903).pdf/303

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— «Não creio! É vulgar sim, tanto que nem chega a ser escandalo, mas é estupido para uma mulher honesta que tem invencivel repugnancia pela mentira reconhecer que tem vivido rodeada d’ellas. Pobre Maria Helena! Quando a vejo tão desgraçada, não sendo feliz nem fazendo feliz o marido, podendo-o ser tanto com quem a ama e... ia jura-lo, ella ama tambem!

— «O dr. Ramalho?

— «Sim. Se houvesse divorcio tudo se liquidava bem.

— «É um triste remedio.

— «Mas sempre era remedio, e assim é a condemnação irremediavel das mulheres honestas.

Calaram-se ambos olhando o céo scintillante d’estrellas, que um vento fresco limpára de nuvens. Pelo Chiado passavam apressados os retardatarios que tinham ido cear aos restaurantes. Raros garotos apregoavam ainda os jornaes da noite humidos de tinta e cheirando fortemente a papel impresso; um cautelleiro gritava n’uma melopeia triste: — é o 3:499, amanhã anda a roda! Quem se habilita?... É o 3:499. Quem quer ser rico sem trabalhar tem o 3:499, tres... mil... quatrocentos... e noventa e nove... — repetia na cantilena que todo o dia tinha gritado pela cidade, que arrastava pela noite fóra como um pungir de saudade e de vaga esperança...

Toda a psycologia dolorosa de um povo, vivendo de aventuras e de milagres, alli estava no pregão do cautelleiro, inconsciente do bem e do mal, cego como o destino que deu a sorte grande um dia a este povo corajoso e submisso para, após longos annos de baldões, seculos de