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arqueológico, mas sobretudo cartográfico, atrás de uma poética do olhar de diferentes épocas que dispara com o tropeço no artefato humano-animal que Bretonne inventou para o seu narrador.

A imagem do repórter-coruja opera como um gatilho de origem que enseja a construção da categoria de narrador-coruja, aqui chamada também de narrador do escuro, homenagem a uma literatura de trânsito que pousa “sobre as coisas do esquecimento e os lugares de passagem” (DELEUZE, 1997, p. 89). Percorridas no modo rizoma, narrativas andarilhas que indicam a permanência de um rastro animal são convocadas para análise mais por interconectividade do que por uma escavação cronológica, naquela proposição benjaminiana de que o presente encobre “fagulhas de muitos agoras” nunca definitivamente perdidos para uma história a contrapelo (BENJAMIN, 1994b, p. 232).

Da voz perplexa emana um duplo sentimento: insatisfação quanto a um modo de visibilidade que deixa enormes regiões a descoberto e o desejo de olhar o que está à sombra. Se todos os olhos estão fechados, há uma cegueira coletiva que tem um duplo sentido: os homens fecham os olhos quando dormem, mas também quando não querem ver ou têm sua acuidade diminuída ou desaparecida. Ao contrário, o sentido da noite para a literatura se instala no silêncio de uma cegueira luminosa que é pura coragem de ver-dade.

Uma vontade de potência, a potência de agir com o olhar exclama para o mundo sua utopia e esperança: “Quantas coisas para ver [...]!” Mas a voz-coruja carrega também um lamento, um diagnóstico apocalíptico ou distópico do mundo, abandonado pelas multidões que dormem enquanto o narrador caminha: “todos os olhos estão fechados!” De um lado, uma multidão que anda às cegas, pois delegou para o controle ocularcêntrico e para o progresso - que tudo vigia - a posse do seu olhar. Cegueira dessa ordem produz invisibilidade, desmemória, perda, desaparecimento. Povos não vistos são povos expostos à extinção, ameaçados de morte, avisa Didi-Huberman (2012) em Peuples expose's, peuplesfzgurants. O presente é um oceano de povos que não cessam de desaparecer diante dos olhos do narrador. De outro lado, o nascimento, o novo, a esperança: ver é desvelar, tirar um véu, mas é principalmente ver-se e revelar-se. Ver é viver e dar vida: ver o rosto singular do outro e ser visto pelo outro que se expõe. Quem flana pelas ruas e viaja pelo mundo vê o rosto dos povos.

O grito da coruja anuncia sem o saber uma morte: dos coletivos que palpitam no escuro da contemporaneidade. Ecoa em uma sociedade cega que paradoxalmente emerge no Século das Luzes, quando tudo é visto à exaustão, quando os instrumentos óticos avançam as

áreas não mapeadas pela visão, bisbilhoteiam e vasculham os interiores dos organismos,

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 11-31, 2016. ISSNe 2175-7917