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ou verbo –, com a indagação constitui-se uma dubiedade pelo que não está dito: a expectativa de uma resposta: “O que seria de mim se me levassem a sério?”. Abrem-se ao leitor possibilidades de preencher esse “mistério”: não seria nada, pois a jocosidade lhe é inerente e se lhe for retirada anularia sua “individualidade”; ou sua individualidade seria outra, incognoscível ou imperceptível para aqueles que não lhe levam a sério. E, sendo assim, que outra coisa seria? Antes de responder a qualquer dessas perguntas, resolvamos antes um impasse.

Note que, do modo com foi apresentado, o poema possui duas ambiguidades: uma no termo “rio”, outra na expectativa da resposta à indagação. A primeira se constitui no que está dito, a outra se constitui pelo não-dito.

A dubiedade do termo “rio”, como se disse, leva a um mesmo lugar: tomando-o como substantivo ou como verbo, chega-se à mesma pergunta sobre ser “levado a sério”. O ganho hermenêutico em revelá-la é estilístico, pois evidencia a sutileza no manuseio com a linguagem. Por outro lado, a dubiedade gerada pela expectativa da resposta pode mudar o curso de compreensão do poema. Se a resposta for “nada”, isso significa que o eu-lírico continuaria sendo quem ele é, ou melhor, o que ele aparenta ser, resultando numa sobreposição da aparência: o olhar sobre ele não mudaria; se a resposta for “outra coisa”, caberia compreender o que seria essa “outra coisa”. Em suma, cada uma dessas respostas reflete o lugar de onde provavelmente partiram: a primeira corresponde a um olhar externo, que, por sua vez, percebe o que é externo, as aparências, que no poema se manifesta como jocosidade; a segunda resposta corresponde a um olhar interno, que permitiria revelar aspectos até então desconhecidos ou despercebidos, não manifestados na aparência. Em última instância, se a ambiguidade do termo “rio” é irrelevante para uma compreensão mais aprofundada do poema, podemos fazer disso uma espécie de analogia com a pessoa do eulírico: essa ambiguidade se manifesta no que está dito, no plano explícito, portanto; o mesmo se dá com o que é aparente a respeito da caracterização da individualidade desse eu-lírico. Ou seja, a ambiguidade do que é aparente não muda o produto final do poema, da mesma forma que a percepção da personalidade manifestada desse eu-lírico não revela o que seria sua “verdadeira” individualidade. Tudo são aparências. Portanto, levar-lhe a sério revelaria outros aspectos menos evidentes, implícitos e, até mesmo, desconhecidos.

A partir daqui é possível dizer que o “mistério” nesse poema é esse “outro eu” que não se revela nas aparências e permanece desconhecido. O “riso” do início do poema não precisa ser, necessariamente, um riso de jocosidade em que o eu-lírico se diverte com a

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 154-169, 2016. ISSNe 2175-7917