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hoje. Na intenção de se chegar a uma prática intervencionista, engajada, crítica e contestadora de que falava Spivak (2010), pretende-se evidenciar os processos históricos, tantas vezes arbitrários, que levaram ao que se entende por raça no país como também questionar os meios pelos quais se mantêm privilégios dos brancos e a invisibilização dos negros, também em revistas. Nesse sentido, embora se conf1gurem como a maioria da população no território brasileiro, os negros e negras por vezes ocupam o lugar de subalternos, ou seja, fazem parte das “camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específ1cos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos do estrato social dominante” (SPIVAK, 2000, p. XX apud ALMEIDA, 2010, p. 12).

A emergência das diferenciações

Autores como Hofbauer (2006) apontam que é o médico francês François Bernier quem forrnalizaria, pelas vias da ciência, as diferenciações entre os indivíduos, lançando a proposição de quatro ou cinco diferentes espécies humanas, em artigo publicado em 1684. A ele se seguiriam uma série de estudiosos europeus que intensif1cariam os debates quanto às supostas diferenças entre as raças, principalmente após o século 19. Assim, as teses científ1cas passariam por Georges Cuvier, fazendo emergir a ideia da existência de heranças f1sicas permanentes entre os vários grupos humanos, Arthur de Gobineau, para quem a verdadeira civilização só poderia ser produzida pela raça branca, e ainda por Franz Boas, que ressaltaria a importância dos fatores culturais na formação das raças.

Na verdade, como pontuam Ferreira e Hamlin (2010), ao longo de todo o pensamento ocidental, mulheres, negros e outros “monstros”, como os povos selvagens, canibais, tiveram algo em comum: todos estariam mais próximos à natureza, apontando para a essência liminar de sua humanidade, o que exigiria a observação contínua e a subjugação do homem branco, com toda a sua civilidade.

Dessa maneira, se, no século 19, o francês Cuvier inaugura o conceito de raça nos tratados científicos, é a figura de Sarah Baartman, a Vênus Hotentote, quem, tendo-o como “preceptor”, inaugura o “conceito moderno de raça”, ao dar corporalidade às teorias racistas (DAMASCENO, 2008, p. 1). A sul-africana nascida em 1789, por ser negra e mulher, estaria duplamente ligada à natureza e, portanto, dois degraus distantes da “cultura” propriamente dita. Levada da África para a Europa, Sarah seria eXibida publicamente, em “espetáculos” científ1cos, junto com outros corpos considerados “estranhos”. Símbolo de monstruosidade,

anomalia, ela ajudaria a atestar a normalidade de seu contrário: os corpos masculinos, brancos.

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 170-187, 2016. ISSNe 2175-7917