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imagem prévia, mas é capaz de formar um agenciamento perturbador até o fundo. Por isso quando analisa as saídas de Hans, Deleuze (1997, p. 87) refuta a interpretação de Freud de que ao ver o cavalo cair, ser chicoteado, debater-se, mexer as patas, o menino reencontraria a cena do pai fazendo amor com a mãe: “beira o grotesco e implica um desconhecimento de todas as relações do inconsciente com as forças animais”. Como se a visão de um animal sendo maltratado não tivesse força própria para enlouquecer, afetar a libido e arrastar qualquer menino para fora de casa em qualquer rua do mundo. Deleuze evocará o “caso Nietzsche” que, depois de assistir a um acontecimento de rua semelhante em Turin, mergulhou em um sofrimento moral avassalador até a morte.

Baudelaire (2010, p. 28) já intuía essa aliança de devires ao rastrear o narrador da vida moderna em O homem da multidão, de Edgar Allan Poe (1993) e a obra do pintor- repórter Constantin Guys. O arrebatamento do flâneur por um devir-animal e um devir- criança ocorre imediatamente após um período de convalescença como uma “infância controladamente recuperada.” A criança interior sorri para o deambulista das ruas justamente quando há no seu olhar um inebriamento infantil, que o crítico descreve como sintoma do conceito de “congestão” para a arte: espasmo nervoso a que se segue a visão e o “pensamento do sublime”. Estupor que lhe reaviva a perplexidade diante do mundo, como se ele o olhasse pela primeira vez e recobrasse o gênio da infância, para o qual “nenhum aspecto da vida está embotado”. Devir-criança sucedendo um devir-velhice, quando a infância e a morte se reaproximam. Segue-se a essa quase-morte um renascer, o acometimento de uma “curiosidade profunda e alegre a que se deve atribuir o olhar flxo e irracionalmente extático das crianças

diante do novo, qualquer que seja ele, rosto ou paisagem.” (BAUDELAIRE, 2010, p. 28).

O selvagem e a rua

Caminhos entre a casa e a estrada levam o homem ao encontro com a criança e o indomável. Conduzem ao aberto dos que escapam, como bichos, como selvagens, à ordem de domesticação - da família, da escola, do trabalho. Por todo esconderijo de rua não cessa de acontecer o reencontro irresistível do homem urbanizado com o que Viveiros de Castro (2011) chamou, em referência a Claude Levi-Strauss, de “a alma selvagem”. Ruas levam para casa, mas também afastam dela, oferecendo possibilidades de desistência, ao mesmo tempo sedutoras e assustadoras, do complexo de sistemas: viário, bancário, operário e identitário, o mais invisível e silencioso dentre os sistemas opressores.

No percurso noturno de quem ao sair de casa pode estar fora de si, a rua reconduz

aquele que flana sem destino e sem horário a um estado de consciência que Levi-Strauss

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 11-31, 2016. ISSNe 2175-7917