Página:Anuário de Literatura vol 21 n 1.pdf/54

Wikisource, a biblioteca livre


as nações que hoje são civilizadas não o foram sempre; todas elas foram durante muito tempo selvagens; e por causa do número infinito de revoluções por que tem passado este mundo, o gênero humano tem sido ora numeroso, ora raro.

Chamamos a atenção para aquilo que afirma o filósofo sobre as nações que antes eram selvagens e agora são civilizadas. A resposta do antropófago ao colonizador europeu veio com o parricídio canibalesco. Embora a visão do mau selvagem tenha sido levada ao Velho Mundo pela pena dos viajantes e cronistas, eles mesmos, nas suas descrições, apresentam o real motivo do ritual de canibalismo encontrado no solo americano, isto é, devora-se o inimigo para obter suas forças. E não era simplesmente matar para comer, para saciar a fome da tribo. Pelo contrário, a morte do inimigo seguia todo um ritual, que durava um certo tempo. Havia uma solenidade em que todos participavam, que ia desde a captura do guerreiro inimigo, passando pelo bom tratamento dado, até o ato em si de comê-lo. Quem descreve bem esse episódio é Jean de Léry (1982, p. 65): “Quando vão à guerra, ou quando matam com solenidade um prisioneiro para comê-lo, os selvagens brasileiros enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e outros ornatos de penas verdes, encarnadas ou azuis, de incomparável beleza natural, a fim de mostrar-se mais belos e mais bravos”. Bastava ter olhado com perspicácia para o caráter ritualístico da cena e não teríamos sido chamados de selvagens, negativamente, ou antissociais, bestas; seríamos vistos como Oswald de Andrade afirma na sua teoria da antropofagia.

Diante do que estamos discutindo, Gregório de Matos apresenta esse ideal de ruptura, muito embora conviva num ambiente ideológico marcado pela censura religiosa e pelo abuso de poder. Mas como antropófago, o poeta promove, estilisticamente, o amálgama linguístico e cultural. Em seus poemas, existe um diálogo permanente entre as línguas que havia na época: escreve em tupi, em português, em espanhol e também, em latim. A língua tinha um papel importante e ao se juntar às formas do falar ameríndio, aos termos castelhanos, aos vocábulos afronegroides, às ladainhas latinas em homenagem à Virgem, provoca um estado de tensão, um choque. É o recurso que o poeta barroco utiliza para, de forma especial, contribuir para a formação da identidade brasileira. A poesia do século XVII promoveu uma renovação da linguagem renascentista, como exemplifica Segismundo Spina ([1980?], p. 68), dizendo que “a frase seiscentista é a frase solta, curta ou desconjunta, subversiva das leis de gravidade do pensamento estabelecidas pela prosa do Renascimento”.

Sob a metáfora do caldeirão ardente (a sociedade brasileira formada sob bases heterogêneas), Affonso Ávila (1994) afirma que essa sociedade assimila toda essa heterogeneidade que está presente no jogo poético de Gregório de Matos. Os elementos tão

54

Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 46-57, 2016. ISSNe 2175-7917