Página:Anuário de Literatura vol 21 n 1.pdf/71

Wikisource, a biblioteca livre

palavra modernidade. Afinal, o que Dostoiévski observa pelas cidades que passa, sobretudo Paris e Londres, é o surgimento de novas metrópoles em que coexistem beleza e uma inexplicável desordem – características essas tão caras à noção prosaica de modernidade que se costuma atribuir às capitais do século XXI.

A modernidade só pode ser entendida enquanto conceito se nos ativermos à etimologia do termo original. Como percebe Hans Robert Jauss, a palavra latina modernus, cuja origem remonta ao século V, não significa somente o novo, mas também o atual, o que nos permite relacioná-la ao neologismo francês modernité, em que o sentido de transitoriedade (mode) significará exatamente a renovação, a atualidade relacionada a algo perene (éternité). Essa é a definição paradoxal que Baudelaire busca pôr em evidência. Para ele, a modernidade é o atual, sim, mas não somente na acepção latina do termo. Trata-se de uma atualidade em que também podemos enxergar o eterno, o extremo oposto do efêmero; em outras palavras: o clássico. Em um dos poemas mais conhecidos de Les fleurs du mal (1857), “À une passante”, o poeta francês apresenta, em versos, de maneira metafórica, o conceito de que estamos tratando: “La rue assourdissante autour de moi hurlait. / Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, / Une femme passa, d'une main fastueuse / Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; / Agile et noble, avec sa jambe de statue” (BAUDELAIRE, 2011, p. 88)[1]. Embora fugaz, a mulher inominável à qual o poema faz referência tem como uma de suas características marcantes a perna de estátua (clássica?), que representaria, simbolicamente, a antiguidade, isto é, o passado de que a modernidade também se constitui. Portanto, moderno seria aquilo capaz de conjugar os dois extremos: o antigo e o novo.

Voltemos a décadas passadas, mais precisamente a uma ou duas gerações anteriores à de Baudelaire. Nelas, entreveremos reminiscências do que se entende hoje por modernidade. Em especial, interessa-me destacar a ruptura experimentada pela sociedade ocidental a partir da Revolução Francesa. Senão, vejamos: “La Revolution a rompu le fil entre présent et passé. La société moderne est séparée de L’Ancien Régime non seulement par une constitution nouvelle, des habitudes de vie et des idées différentes, mais aussi par un autre goût, une autre relation à la beauté” (JAUSS, 1978, p. 196)[2]. O crítico alemão Hans Robert Jauss (1921-1997) chama atenção para o fato de que a ruptura não se verificou apenas no âmbito político-social,


  1. A rua em torno era um frenético alarido. / Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, / Uma mulher passou, com sua mão suntuosa / Erguendo e sacudindo a barra do vestido. / Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. (Tradução de Ivan Junqueira).
  2. A Revolução rompeu a linha entre presente e passado. A sociedade moderna separa-se do Ancien Régime não apenas por uma nova constituição, hábitos de vida e ideias diferentes, mas também por um outro gosto, uma nova relação com a beleza (Tradução livre).

71

Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 70-80, 2016. ISSNe 2175-7917