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hoje, mantém esse status: “Sim, Paris é uma cidade assombrosa. [...] Realmente, mais um pouco e a Paris de um milhão e meio de habitantes vai transformar-se numa cidadezinha professoral e germânica, pretrificada em ordem e calmaria, a exemplo de alguma Heidelberg” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 114). Assim, vê-se que o sentimento de Dostoiévski diante da Paris de meados do século XIX era de admiração e espanto. O caráter ambíguo desse sentimento se coaduna sobremaneira com o próprio conceito de modernidade que já observamos: algo que nos encanta devido a sua beleza alegórica, mas que, concomitantemente, se afasta de nós por uma espécie de exagero desproporcional que não somos capazes de mensurar. Para os “habitantes do século XXI” não é difícil gerenciar essa contradição. Mesmo que não estejamos nas cidades mais modernas do mundo, podemos saber como elas são e mesmo vê-las através dos recursos tecnológicos atuais. À época em que Dostoiévski escreveu suas notas, não havia como travar contato com as grandes metrópoles do mundo de maneira significativa senão indo até elas, o que certamente pode explicar o deslumbre que, em um primeiro momento, as cidades parecem ter provocado no escritor. Mas se Paris impressionou o autor de Crime e Castigo por sua ordenação, ainda que esta se configurasse dentro de uma assombrosa e grandiosa megalópole, a cidade de Londres encantaria Dostoiévski por se tratar do extremo oposto:

Que diferença em relação a Paris, mesmo exteriormente! Esta cidade que se afana dia e noite, imensurável como o mar, com o uivar e ranger de máquinas, estas linhas férreas erguidas por cima das casas (brevemente, serão estendidas também por debaixo delas), essa ousadia de iniciativa, esta aparente desordem, que em essência é a ordem burguesa no mais alto grau... [...] Sente-se uma força terrível, que uniu num só rebanho todos estes homens inumeráveis, vindos do mundo inteiro (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 115).

Convém lembrarmos que na Inglaterra, durante os séculos XVIII e XIX, ocorreu a primeira grande revolução industrial. Enquanto Dostoiévski “flaneava” pelas ruas da capital inglesa, estava em curso um processo de industrialização que reconfiguraria a relação de trabalho na sociedade burguesa. Não é difícil entrever na passagem acima um olhar assustado diante do pretensioso progresso da modernidade. A grandiosidade da capital inglesa e a consequente impossibilidade de mensurá-la impressionam Dostoiévski. O olhar crítico do

escritor russo observa que a ordem burguesa é, paradoxalmente, a ausência de qualquer ordenação. O espírito dessa nova sociedade que surgia diante de seus olhos se materializaria décadas depois, durante o século XX, com a consolidação do capitalismo. No entanto, já era possível perceber, no momento em que Dostoiévski escreve suas notas, que o “progresso” sobrepujara as construções humanas. As casas foram “invadidas” por linhas férreas; nas ruas,

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 70-80, 2016. ISSNe 2175-7917