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não se coaduna com a nobreza de caráter que o burguês ambiciona exibir como mais um de seus incontáveis pertences. Portanto, o burguês é um sujeito essencialmente paradoxal e, por isso mesmo, um dos “melhores” representantes da moderna sociedade burguesa: “Acumular fortuna e ter o maior número possível de objetos transformou-se no principal código de moralidade no catecismo parisiense” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 128). As características do parisiense do século XIX assemelham-se sobremaneira as dos habitantes de inúmeras capitais contemporâneas, já que a modernidade, embora tenha uma origem mais ou menos precisa, ainda não parece ter chegado ao fim nem é exclusiva de um único país ou cultura. A modernidade é, ao contrário, a desconstrução das diferenças entre as grandes metrópoles; verdade gritante para os dias de hoje. Com esforço, alguns buscam manter a arquitetura e cultura que diferenciam os espaços urbanos, mas estes desde há muito se assemelham em diversos aspectos. Os arranha-céus, as lanchonetes fast-food, o trânsito intenso de veículos e pessoas sempre atrasadas para seus compromissos, tudo isso parece fazer parte da genérica capital moderna que se configurava em meados do século XIX.

Considerando a crítica ao homem burguês empreendida por Dostoiévski, não seria despropositado acreditar que o escritor voltasse um olhar mais complacente ao pensamento oposto, o que significa dizer: ao pensamento de esquerda, socialista. Não é demais lembrar que o próprio Dostoiévski fora preso e condenado à morte por participar do círculo de Petrachévski, em que se discutiam ideias da esquerda socialista europeia, em especial as dos chamados socialistas utópicos como Charles Fourier (1772-1837) e Saint-Simon (1760-1825). Entretanto, as observações presentes em Notas de inverno... não são nada condescendentes em relação aos socialistas: “... o que pode fazer o socialista, se o homem ocidental não possui o princípio fraterno, e se, pelo contrário, o que existe nele é um princípio individual, pessoal, que se debilita incessantemente, que exige de espada na mão os seus direitos?” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 136). Aqui, merece destaque o fato de que, na visão de Dostoiévski, nem o burguês com sua sociedade liberalizante, nem o socialista pregando uma suposta igualdade entre os indivíduos poderiam superar as contradições do homem daquele tempo, já de todo afetado por um novo mundo que via erguer-se diante de si.

Os três capítulos finais de Notas de inverno... são dedicados a uma explanação teórica acerca das sociedades europeias que Dostoiévski então visitava. Em lugar das descrições urbanas que observamos anteriormente, o texto passa a abordar questões de caráter filosófico. Porém, é forçoso voltarmos uma vez mais aos relatos sobre a metrópole física, pois não ficou claro por que podemos considerar Dostoiévski um verdadeiro flâneur da ascendente

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 70-80, 2016. ISSNe 2175-7917