Página:Ao correr da pena.djvu/58

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os amores, e entregou-se ao seu amante de corpo e alma.

Não serei eu que desvendarei os mistérios desses amores fantásticos, e vos contarei as horas deliciosas que corriam no silêncio do gabinete, mudas e sem palavras. Só vos direi e sito mesmo, é confidência, que, depois de muito sonho e de muita inspiração, a pena se lançava sobre o papel, deslizava docemente, brincava como uma fade que era, bordando as flores mais delicadas, destilando perfumes mais esquisitos que todos os perfumes do Oriente. As folhas se animavam ao seu contato, a poesia corria em ondas de ouro, donde saltavam chispas brilhantes de graça e espírito.

Por fim, a desoras, quando já não havia mais papel, quando a luz a morrer apenas empalidecia as sombras da noite, a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem forças e sem vida, e soltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas da harpa ferida pelo vento. Era o último beijo da fada que se despedia, o último canto do cisne moribundo.

Assim se passou muito tempo; mas já não há amores que durem sempre, principalmente em dias como os nossos, nos quais o símbolo de constância é uma borboleta. Acabou o poema fantástico no fim de dois anos; e um dia o herói do meu conto, chamado a estudos mais graves, lembrou-se de um amigo obscuro, e deu-lhe a sua pena de ouro. O outro aceitou-a como um depósito sagrado; sabia o que lhe esperava, mas era um sacrifício que devia à amizade, e por conseguinte prestou-se a carregar aquela pena, que já adivinhava havia de ser para ele como uma cruz pesada que levasse ao calvário.

Com efeito, a fada tinha sofrido uma mudança completa: quando a lançavam sobre a mesa, só fazia correr. Havia perdido as formas elegantes, os meneios feiticeiros, e deslizava rapidamente sobre o papel sem aquela graça e faceirice de outrora. Já não tinha flores nem perfumes, e nem centelhas de ouro