Página:As Minas de Prata (Volume VI).djvu/275

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em seu amor, o amigo dedicado de Estácio!...

A nobre alma de Inesita condensou-se toda em um assomo de soberba indignação. Alçou o talhe para afrontar bem em face o desleal e traidor; seu lábio olímpio o fustigou com uma sílaba só:

— Vós!...

Torrente de indignação, gemidos de leoa, ondas de sarcasmo, grito de ameaça, tudo ali estava naquela voz breve e ríspida.

— Perdão! murmurou Cristóvão curvando a fronte.

Tomado de um surdo desespero, por não poder atravessar de chofre aquele muro de carne que se opunha à sua passagem, o embuçado, concentrando as forças, metera ombros à multidão, como se fora uma alavanca e foi levando-a por diante.

Entrava já o cortejo na capela, quando afinal conseguiu o desconhecido chegar à porta; nova barreira, e mais formidável pela estreiteza do lugar, se ergueu à sua passagem; porém a grande massa de povo, que vinha após, levou por diante a mó de gente que tomava a entrada; o embuçado achou-se de repente em meio da capela.

Tinha-se enchido de coragem e contudo sucumbiu diante do espetáculo que viram seus olhos alucinados.

Aos pés do deão, revestido dos hábitos episcopais, uma dama e um cavalheiro estavam ajoelhados, esperando o instante de receberem a bênção nupcial.

Na posição em que se achava não podia o desconhecido ver-lhes o rosto que tinham voltado para o altar; mas a dama, não carecia de a verem seus olhos, pois já seu coração a adivinhara.

O mancebo sorriu; seu olhar terrível correu o cortejo de brilhantes cavalheiros, à frente dos quais aparecia

no match

D. Francisco de Aguilar; a mão, que desde o princípio tinha ao peito, comprimindo as pulsações precípites do coração, abateu-a sobre o punho da espada. Já o ferro lampejava, e o pé promovera o passo ardido... Novo e mais forte abalo prostrou o valente mancebo.

Inesita volvera o semblante para fitar seu desposado. Que deslumbrante beleza!... Sua pupila negra cintilava, e desferia sobre o cavalheiro raios esplêndidos; tinha na fronte uma auréola de rainha; dos lábios fluía um sorriso fulgurante, que exaltava toda sua pessoa. O desposado parecia ao contrário esmagado pela emoção; tinha a cabeça baixa, e nem ousava erguer as vistas para a formosa noiva.

A alma do embuçado gemeu em sua aflição:

— Senhor Deus! Ela o ama.

E abandonou o punho da espada leal! Que podia ela contra tamanha desventura! Inesita o traía; tinha deixado de pertencer-lhe; já não precisava do seu amparo; nem ele tinha já o direito de perturbar a cerimônia religiosa. Seu direito agora era só um, o da vingança; não contra ela, mísera mulher, mas contra quem lha roubara. Bateu de leve na espada como se a acalentara, ou lhe recomendasse paciência; e aguardou o fim da cerimônia.

Viu impassível a bênção nupcial; era um homem morto, já sem sensibilidade para a dor; a desgraça batia nele, como o sopro da tempestade no flanco de uma rocha. Mas a mesma rocha dura e impenetrável, um dia a abala e dilacera o raio.

Assim foi ele. Ao terminar a cerimônia ergueram-se os noivos. Ele não viu, nem ouviu mais nada; quando recobrou os espíritos, estava na capela erma e apenas iluminada por algumas tochas; uma vaga lembrança do que o desacordara, tinha ficado impressa em seu espírito, como o sinal de uma queimadura recente na epiderma.

— Cristóvão!... soluçavam os ecos de sua alma! Cristóvão, meu amigo, meu irmão!

Era realmente Garcia de Ávila que se erguera dos pés do sacerdote e oferecera a mão a Inesita para voltar às salas do festim. Tinham ambos passado por diante daquele vulto estático sem nele reparar. As danças os esperavam; à sua chegada começara o baile, cujo ruído alegre derramava-se pela serenidade daquela noite de maio.

Quando o cortejo saíra da capela e após ele o popular, outro embuçado chegou à porta e examinou com atenção a figura do desconhecido; havia alguns instantes que ele o entrevira na multidão, e se pusera à busca. Encontrando-o agora, e confirmando suas suspeitas, aproximou-se lentamente.

Era João Fogaça.

O forasteiro tomou, sem proferir palavra, a mão do embuçado e apertou-a ao coração. Esse coração rude, mas leal, compreendia a dor que assolava aquela nobre alma traída. Passados alguns instantes de respeitoso silêncio, falou com voz submissa e fraca, como se receasse ofender essa dor recente e viva.

— Depois do que acabam de ver meus olhos, só esperava que chegásseis, para cumprir a palavra que vos dei, e partir-me!... O papel, que vos foi roubado, está em mãos do doutor: aqui tendes o recibo.

O embuçado tomou maquinalmente o objeto que João Fogaça lhe apresentava:

— Careceis de mim, Sr. Estácio?... Dizei-o sem medo! Tendes aqui um amigo!

— Não proferi tal nome!... De nada careço senão que me abraceis!... O contato de um coração leal como o vosso há de fazer bem a esse meu transido e morto pela mais negra perfídia.

João Fogaça apertou o embuçado em seus braços, e sentiu os olhos úmidos de lágrimas:

— Parto esta alvorada. Vou-me ao sertão com minha mulher, para não mais tornar. O que presenciei agora me enjoou do mundo. Antes quero a companhia das feras!

— Feliz quem pode, como vós, salvar dele sua felicidade, para abrigá-la longe da vista dos homens!...

Abraçaram-se de novo por despedida. João Fogaça saiu da capela e afastou-se rápido; ele tinha medo do que ia suceder, ali, naquela noite.

Entretanto corria o tempo alegre e festivo nas salas ricamente adereçadas. As danças figuradas trançavam coreias de damas e cavalheiros, que ondulavam garbosamente ao som cadente da música.

Fora, em torno ao edifício iluminado, agitava-se a chusma do popular, soltando ledos descantes e levantando brindes aos noivos; os pajens corriam de um a outro lado com tabuleiros de viandas e outras provisões, ou com canjirões e botelhas, distribuindo a eito comezainas e bebidas.

Duas pessoas unicamente, e eram os heróis da festa, não tomavam parte no geral regozijo.

Inesita estava ansiada; dir-se-ia que esperava com impaciência uma nova que tardava. Contemplando-a, percebia-se a violência que ela empregava para reter dentro de si uma alma que esforçava por irromper e vazar-se; mas não obstante a sua resistência de vez em quando desprendiam-se chispas ardentes, que incendiavam o olhar e fulgiam no sorriso. Nunca maior paixão e mais possante cólera vulcanizou um coração de mulher.

Cristóvão estremecia de momento a momento. Volvia então os olhos em torno, como se receasse ver surgir-lhe em face um espectro medonho. Parecia que um remorso pungente o acicalava. Mas logo após a dor desse remordimento, ele conseguia dominar-se: a inquietação cedia à costumada tristeza; e sobre esta derramava-se uma doce serenidade.

Ninguém em tudo isso reparara. A impaciência da donzela e o sobressalto do cavalheiro perdiam-se nos rumores festivos do sarau.

Mas de repente um calafrio arrepiou toda aquela multidão contente e jubilosa. A voz da morte, estridente, lúgubre, atravessou o burburinho harmonioso da festa. A respiração estacou no seio da multidão; todos quedaram-se opressos, inquirindo com os olhos sobre o estranho sucesso, e sem ânimo de soltar dos lábios a palavra que o terror ali gelara.

Havia causa para a terrível comoção.

O sino da capela tocava a finados; esses dobres lentos e fúnebres traspassavam o coração como os gemidos de uma longa e cruel agonia. Ao mesmo tempo, sem que se soubesse donde, nem como viera, derramava-se pela turba uma voz sinistra: que aparecera na capela uma cova aberta, sobre a qual haviam semeado flores de laranja.

D. Francisco, sabedor do sucesso, tratou de conhecer a verdade. Eis o que se pôde saber de positivo.

Depois da celebração das núpcias a capela ficara deserta, mas iluminada ainda por algumas tochas. Sem que ninguém visse como, apareceu de repente fechada; mas isto não deu causa a reparo, senão quando a gente, que girava cerca, começou de ouvir umas pancadas, como se estivessem cavando a terra. Houve então quem se benzesse e mal agourasse daquele rumor em dia de bodas; mas o vozear da turba abafou os ecos subterrâneos; e o prazer breve esvaneceu o susto.

Decorrido algum tempo um pajem, que andava com um pichel a distribuir vinho entre os grupos, avistou junto à capela um embuçado cosido com a parede.

— Já brindastes a senhora D. Inês e seu nobre desposado, homem?

— Ainda não! respondeu-lhe uma voz surda.

— Tomai então de beber!

— Que trazeis aí?

— Ora esta! Vinho e do bom!

— Pois eu quero sangue!

O pajem recuou espavorido; porém mão de ferro travou-lhe do punho e o arrastou. Viu-se ele súbito transportado à capela; no centro estava aberta uma cova com quatro tocheiros nos cantos. O vulto embuçado mostrou-a e desapareceu; instantes depois o sino começara de tocar a finados. De terror perdeu o pajem conhecimento; recobrando os sentidos, andou esvairado a correr de um a outro lado em busca da porta, antes que acertasse com ela e pudesse escapar-se à visão horrível.

D. Francisco e Cristóvão encaminharam-se para a capela a fim de averiguar do conto, e a maior parte dos convivas os acompanhou. Não fora alucinação do pajem: a cova lá estava aberta, com os tocheiros nos cantos, e as flores de laranja em torno.

— Não passa de um mau gracejo! disse D. Francisco rindo para dissipar a terrível impressão.

Mas todos viram a lividez que lhe jaspeava o semblante, e o tremor convulsivo que dele se apoderara. A música, um instante interrompida, derramou novas torrentes de harmonia; as danças foram outra vez trançadas; fogos de artifício e invenções se queimaram para divertir os convivas; porém não foi mais possível reanimar a festa.

O gelo do túmulo pesava agora sobre a turba há pouco prazenteira e folgazã.

Contavam algumas damas uma circunstância notável. Inesita, ao saber do acontecido, não mostrara o menor susto. Estava ela ouvindo os dobres do sino com um sorriso doce, como se escutara a mais suave melodia, quando lhe vieram contar da cova aberta de fresco na capela. Voltou-se para as amigas e disse-lhes mansamente, com uma voz meiga:

— É a minha!... Fizeram bem de abri-la.

Cristóvão entrou na sala; tinha percorrido toda a capela e a quinta em busca do embuçado. Pouco depois voltou D. Francisco e os cavalheiros que procederam a igual pesquisa, ao sair da capela, acompanhados de pajens com tochas. Nada absolutamente viram de suspeito.

Eram mais de nove horas.

O cortejo, que devia conduzir os noivos a suas casas, começou a desfilar. Inesita subiu ao seu palanquim dourado, aberto em forma de uma concha, e forrado de veludos e sedas; as outras damas tinham palanquins vistosos, embora menos ricos. Cristóvão, D. Francisco e os cavalheiros montavam luzidos corcéis, custosamente ajaezados. Na frente ia a música, concertando vários toques muito alegres.

Quando chegava a procissão nupcial perto à casa de Cristóvão, iluminada em festa e adereçada para receber sua nova senhora, repararam as pessoas que iam adiante, em um vulto de mulher a atravessar a rua. Quem quer que fosse, desapareceu na porta, por entre a numerosa criadagem, ali agrupada para saudar os noivos.

A suntuosa ceia estava posta em uma sala do edifício, que formava o centro de formoso pavilhão, unido às casas de morada por uma passagem de varanda.

A longa mesa carregada de iguarias, vinhos e frutas, esperava os numerosos convivas. Cavalheiros e damas a cercaram para honrar os seus hóspedes e brindar novamente as felizes bodas.

Logo em princípio do banquete Cristóvão dirigiu-se aos seus convivas:

— Senhores, que me fizestes a mercê muito subida de acompanhar-me nesta noite de minha felicidade, tenho outra graça de maior quilate que pedir-vos; e de vossa generosidade espero não a recusareis.

— A demora é o tempo de a declarardes! respondeu D. Francisco. Fio dos senhores que todos porfiam em vos dar gosto e prazer!

— Certo! exclamaram os fidalgos. Ordenai de nós como vos aprouver.

— Empenho-me convosco, senhores meus, para que nenhum deixe esta sala do banquete antes de meia-noite passada; porque para esta hora reservo o melhor e mais apurado da festa.

— Artifícios de fogo? exclamaram uns.

— Algum baile à francesa? acudiram outros.

— Aposto eu por uma serenata!

— Vê-lo-eis, senhores!...

Cristóvão dirigiu-se a Inês:

— Permitireis, senhora, que me afaste um instante de vossa presença, pois é para mais alegre torná-la nesta vossa casa?

D. Inês pôs os olhos no seu desposado e lhe disse com uma voz profunda:

— Ide, senhor!

Ávila misturou-se entre os hóspedes, e na confusão da turba desapareceu sem que o percebessem.

Recolhido ao gabinete, Cristóvão como que arrojou de si a tristeza que o oprimia. Seu rosto agora estava mais sereno; seu lábio, se ainda não o inflorava o sorriso, também já não o confrangia o íntimo sofrer; o olhar não vagava mais perplexo e tímido pela turba, como lhe sucedera no sarau; mas fitava avante com firmeza e calma o alvo de seus pensamentos. Dir-se-ia que era a presença dos convivas que o entristecera e atormentara.

O mancebo tirou do seio um manuscrito que releu atentamente e lacrou. Isto feito, chamou seu escudeiro:

— Afonso, toma esta missiva. Quando meia-noite soar, a entregarás a D. Francisco de Aguilar na mesa do banquete, e lhe dirás de minha parte que a leia a todos.

Cristóvão atalhou as palavras com um rir franco e aberto:

— É uma alegre surpresa que preparo a todos!

Alegrou-se Afonso de ver seu amo alegre, e recebeu o lacrado.

— Depois que houveres entregado a D. Francisco, ouve-me bem: fecharás a porta que comunica o pavilhão; e a ninguém deixarás penetrar nestes aposentos.

— Farei como ordenais!

— Vai. À meia-noite em ponto!...

Saído o pajem, fechou o cavalheiro a porta, e foi sentar-se junto à mesa na cadeira de espaldar. Pôs ao lado o punhal, e afundou-se em seus pensamentos.

Um rumor o despertou.

O vulto negro do embuçado estava de pé, diante dele.

Cristóvão ergueu-se lentamente.

O manto escorregou das espáduas ao longo do corpo armado do cavalheiro negro. O sombreiro abatido ao chão por um gesto rápido, mostrou o lívido semblante de Estácio, e especialmente a fronte vasta que esmagava com o peso do seu vulcão aquele busto já vergado pela dor.

— Estácio!...

Distinguiu-se este nome no estalar do grito rouco que prorrompeu do peito de Ávila.

Os lábios de Estácio entreabriram-se; mas antes que a palavra escapasse, cerraram-lhe os dentes; ergueu lentamente o braço esquerdo, e desenvolvendo-o num gesto enérgico, apontou com o índex para o centro da sala. Cristóvão obedeceu ao senho imperioso, retrocedendo cada passo que promovia o outro.

Chegados a meio do aposento, Estácio levou a mão ao flanco e a lâmina terrível de sua espada lampejou, vibrando sinistros clarões.

Cristóvão de braços cruzados o contemplava agora imerso em tristeza profunda.

Mas um sorriso brotou nesse pélago de dores, que era sua alma, e lhe subiu aos lábios.

Desembainhou a espada.