Página:Cartas de amor ao cavaleiro de Chamilly.pdf/165

Wikisource, a biblioteca livre
CARTA DE GUIA DE CASADOS
139

tento ; segredos perpétuos induzem suspeita. Evite-se-lhes que se chamem umas às outras com nomes que inventa a sua ociosidade, como : meu marido, minha avó, minha comadre ; ou também, amores, cuidados, pensamentos ; porque tudo isto, quando de presente não seja mau, é a meu juízo um jôgo de espada preta em que o vício as exercita, para que depois as tenha déstras para qual mais sanguinho desmancho.

Mas nem por isso aconselho aos amos o que Maquiavelo aos príncipes, a quem persuade revolvam os criados, para que não havendo algum que seja fiel ao outro, lho sejam todos a êle. Vele-se o casado quanto puder ; porém não espere por ruins meios a concórdia, que se não alcança (se se alcança) senão na casa pacífica, e concertada. Não quero pôr em cêrco estas mulheres, nem negar-lhes o lícito ; aponto onde jaz o perigo, para que dêle se desviem, pelo cuidado do senhor da casa, a senhora, e as criadas dela.

Sobretudo, convém que o senhor procure ser bem quisto de suas criadas, e as trate para êsse efeito com a benignidade possível ; acuda por elas na semrazão que lhes fizer sua ama, se lha fizer. Não se particularize per nenhuma: fale, e procure por tôdas. A liberalidade, pelo menos a galantario, ajuda a isso muito ; dando-lhes de quando em quando que dêle não esperam.

Verdadeiramente, senhor N., que podemos afirmar, que assim como entre a cabeça, e mais partes do corpo humano, convém que haja grande conformidade para que vivamos com saúde ; assim também entre o senhor da casa, e os familiares dela, convém que haja concórdia, para que se possa viver com gôsto, e quietação. E da mesma sorte, assim como os humores mais sutis, e delgados são os que primeiro se revolvem, e corrom-