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CARTA DE GUIA DE CASADOS
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Uma cousa que antigamente entre as amigas se chamava púcaro de água, passou a ser merenda, e de merenda a banquete ; e de banquete tem já subido a tanto, que se lhe não acha nome, ou pelo menos não lho quero eu dar. Não sei como seja bôa amizade, andarem-se destruindo as amigas umas às outras, empenhando as casas com excessos, desgostando os maridos com petições impertinentes, de perigoso, e de impossivel despacho. Se esta demasia se encaminha a mostrar amor, certamente indigna à a amizade que tem a guia por seu fim ; se a ostentar grandeza, ¿ como se pode conseguir a grandeza pelos meios que se alcança amizade, que entre todos os porque se alcança, nenhuns são tam próprios como o gasto desordenado ?

Havia adoecido um fidalgo de pena de se vêr empenhado sem propósito, pelos despropósitos com que sua mulher gastava o que não tinha ; e como, estando com grandes febres, visse em casa um prato de cidrão mole, com que apesar de sua careza, a mulher se servia de ordinário nestes seus convites, dizem que disse o pobre doente : Dai-me cá aquele cidrão, que o quero comer todo. Requeria-lhe a mulher que tal não fizesse, porque o cidrão era fogo para quem se achava naquele estado. Respondeu então : Bem sei que é fogo, que bem abrasado me tem ; mas deixai-me vêr se acaso tem o cidrão a virtude do cão danado, cujos cabelos, se os põe na mordedura que êle fez, dizem que a sara logo. Nem andou menos discreto um criado, que perguntando-lhe certa pessoa, que fazia seu senhor, porque o queria ver ; êle lhe respondeu agudamente : Meu amo não está para vêr, porque o está merendando minha senhora com as senhoras suas amigas.