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CARTA DE GUIA DE CASADOS

ofensa a suas mulheres divertindo-lhes a afeição, que qualquer dos outros cabedais, que lhes são devidos, e com êsse nome de devido se nomeiam ; antes será maior a ofensa quanto fôr a mulher mais daquelas, que só da afeição de seus maridos se satisfazem.

Não quero passar tam de-pressa por esta palavra, ciúme, ou ciúmes; que ou dados, ou tomados, significa um humano inferno. Humano, porque vive entre os humanos; e desumano, porque desumanamente trata aqueles entre quem vive, ou vivem nêle.

Foi questão, e ainda não é conclusão, qual lhe seria pior a um casado, dar ciúmes a sua mulher, ou tê-los dela ? Escuso-me de averiguá-la ; uma, e outra cousa abomino. Há muitos que do dar ciúmes não fazem caso, e grandíssimo de os receber.

O engano, senhor, é manifesto ; porque o dar ciúmes que se despreza, de ordinário assenta sôbre grande causa; e o recebê-los que em muito se tem, as mais vezes é imaginação; e como as mulheres padeçam ainda menos de fracas, que de vingativas, acontece que mil vezes produz nelas mais terríveis efeitos a vingança, que a fraqueza.

Disse bem quem disse, que os ciúmes se pareciam a Deus, em fazer de nada alguma cousa. Eis aqui o seu ofício, que em tôdas as maneiras não deve ter logar nas casas onde viver a discrição, e cristandade. Porque certo é terrível tormento o que padecem, já os homens, já as mulheres, por esta maldita imaginação ; a quem com não menor propriedade houve quem chamasse víbora, porque em nascendo mata a pessoa que a engendra.

Amoesto a todo casado fuja desta peste ; e que aquilo mesmo que para si tam justamente deve de não