Página:Cartas de amor ao cavaleiro de Chamilly.pdf/219

Wikisource, a biblioteca livre
CARTA DE GUIA DE CASADOS
193

querer, o não queira também para quem ama, ou deve de amar pelo menos.

Dizia um discreto, que o chegar um casado a dar a entender a sua mulher tinha ciúmes dela, era meio caminho andado para que ela lho merecesse ; aludindo ao que se diz vulgarmente, que a maior jornada é o sair de casa.

Assim como o direito dizem que ten deixado muitos casos para que não assinou pena, por não presumir aconteceriam no mundo ; assim o casado deve mostrar-se esquecido de tal pensamento, por não presumir lhe possa ser necessário.

Distingo porém prudentes de ciosos. A prudência precata, desvia, e assegura todos os caminhos da suspeita. Nada disto faz o ciúme ; antes para não ser um homem cioso, convém que seja prudente.

Pô-lo hei mais claro com êste exemplo. O prudente é como o capitão de um castelo, que traz pelo campo de contínuo suas espias ao longe, vigiando noite e dia seu inimigo, bem que o não tenha ; porque quando o tiver, o não possa tomar de sobressalto. Êste tal vive seguro, come com gôsto, dorme com descanso. O cioso é como outro capitão, que temendo-se de tudo o que há, e não há ; se encerra miseràvelmente em seu castelo ; o ar que corre lhe faz nojo, a fôlha que se move cuida que é assalto ; e assim sem honra, e sem proveito, cheio de mêdo e desconfiança passa a vida, ignorando o que é paz e repouso.

Aqui lembro de passo a muitos e muitas que me lerem, que quando me virem ser miúdo nas cousas e praticar cautelas que parecem escusadas, não cuidem que por nenhum modo é meu ânimo inculcar aos casados o ciúme ; antes, porque nenhum o seja, lhe propo-