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PRÓLOGO
XIX

ção libertadora. Faleceu a 28 de julho de 1723. Tinha 88 anos de idade, e mais de sessenta de claustro.

É curioso analisar a vida de Mariana, quanto nos podem elucidar os documentos encontrados. O seu perfil moral ressalta encantador a cada passo, recortado pàlidamente, como nos agiológios. É duma grande e comunicativa bondade. «Ninguém teve queixa dela: era muito benigna para todos» — conta a vélha madre escrivã. De resto, essa bondade áurea e forte, trasborda inalterável em tôdas as cinco Cartas. Ainda quando o orgulho ferido a sacode, e lhe dói como os cilícios futuros, logo na alma lhe esvoaçam os anjos do perdão e do afecto. Comove, na verdade, essa mulher abandonada, ludibriada, esquecida, e a quem a bondade conserva sempre puras as ondas da paixão mais revôlta, como o sal purifica as ondas dêsse Atlântico!

Como se vê das Cartas — a maravilha que o leitor vai ler — na primeira o pressentimento do abandôno anima-se ainda de esperança, à maneira de certas nuvens presagas que o sol ainda irisa: — «Adeus, ama-me sempre, e faze-me ainda sofrer mais tormentos!» Pobre Mariana!

Depois vão-se acastelando as nuvens. Mariana sofre muito, adoece, definha-se. O coração estala-lhe no peito — quere voar para a França… Os seus gritos increpam o amante, para logo lhe suplicarem piedade, porque não quere magoá-lo… Mas o destino vai-lhe aparecendo como um emblema fúnebre; lembra-se do suicídio; e no pavor do seu esmagamento moral, as incoerências ressaltam dêsse coração que fica nú e sublime como uma labareda que procura apagar-se e que esfusia, num claro-escuro de génio, sublime de desartifício e de verdade.

Todos o estimam, sempre. Dela irradia, com a suges-