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CARTA DE GUIA DE CASADOS

que me façais, nem vos hei-de querer mal, nem me haveis de parecer mal.

Deve-se à fé, e igualdade no matrimônio contraída, grande satisfação ; e assim como entre os bem casados é digno de muita dôr, faltar a alguma dêles a vida ; assim é digno de muito sentimento faltar a alegria de algum. Já deixo dito que as almas dos casados são comuns ; seus gostos, e pezares. Não haja parte que se queira levantar com a parte alheia. Nenhum chore, nem se alegre, mais do que pode tocar afecto à sua ametade.

Pois a propósito destas que de tristes se desconcertam, farei lembrança de outras que igualmente são repreensíveis por, de muito alegres, se concertarem mais do necessário. Já disse àcêrca das galas, e adornos ; e não sei se de nojo, ira, ou esquecimento tardei até agora em falar de umas que põem no rostro.

A mulher que põe no rostro, põe nêle sua injúria, e tira dêle sua vergonha ; não beleza, neme mocidade põe por certo ; porque não só ofende o siso, mas os anos, e o parecer. Todos entendem logo que pouco se fia em si aquela que de tam baixas cousas se ajuda. Sempre se teve por cobarde o que muito se armava. Quantas, em vez de agradarem aos que as vêem, por essa própria diligência escandalizam e vão como convidando o riso, e a mofa da gente que pretendiam admirar, e afeiçoar, pode ser ! Êste abuso é digno de que o marido, logo que o conhecer, o atalhe por todos os meios ; porque a idade o não emenda, antes o acrescenta. Tenho por certo que tam ruim conta dá de seu juízo o marido que sofre posturas a sua mulher, como dá de seu entendimento a mulher que as usa. Uma convidava a seu marido que se sentasse junto dela; e êle dizia : Deixai-me, que de uma doença me ficou grande entejo aos doces da botica.