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CARTA DE GUIA DE CASADOS

do mundo, senão venerar, amar, regalar, e servir a aquele homem, confessar-se por seu escravo, por seu devedor, por seu perpétuo amigo ?

Pois que faz menos, ou que não merece mais, aquele que cria por tantos anos a filha, a doutrina, guarda, e aperfeiçôa ; e depois repartindo com ela seus bens, e entregando ametade da sua alma, mete todo êste tesouro na mão a outro homem, a quem porventura antes nada devia ?

Trarei para exemplo de bons sogros o que sucedeu quási entre nós, e quási em nossos tempos. E foi, que havendo um homem rico casado uma sua filha com um fidalgo honrado, e querendo casar outra com outro, em nada maior que o primeiro ; êste segundo não quis fazer o casamento sem que lhe dessem em dote mais dez mil cruzados do que ao outro havia dado; e como o sogro dissesse, que teria grande causa de queixa o primeiro genro, dando êste mais ao segundo, e lhe não valesse esta razão para efectuar o último casamento ; houve enfim de convir nêle, e efectuá-lo com tal galantaria, e primor, que no próprio dia, que assinou as escrituras ao segundo genro, mandou outros dez mil cruzados ao primeiro, dizendo-lhe, que não queria que houvesse alguêm que cuidasse o estimava a êle menos.

Por certo que não vi, nem ouvi cousa mais galante, e honrada. E porque se veja que também há genros que o sabem ser como devem, contarei a v. m. outro caso que bem o prova.

Havia, não há muitos anos, em certo logar uma pessoa riquíssima, com uma só filha herdeira para casar: afeiçoou-se sua mãe a um seu natural de bôa qualidade, mas não muita fazenda ; mandou-lhe dizer que estava tam satisfeita de sua pessoa, que lhe queria dar as me-