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0 ESPIÃO ALLEMÃO
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Lembrai-vos da Belgica, essa heroica crucificada na cruz de ferro do monstro kruppeano! (sensação) Senhores! Um desagravo se impõe. Precisamos manifestar a nossa repulsa perante a colônia alemã que, como vibora, alimentamos em nosso seio. Viva a França! Viva o Exmo. Dr. W. B. Pereira Gomes, nosso imperterrito presidente!»

Foi um delirio. Estrepitaram palmas, de envolta com imprecações de vingança — «Abaixo o Muller!» A onda popular, arrastada pelos impulsos do mais nobre patriotismo, despejou-se, como avalanche para os lados da velha botica. Leão Lobo á frente, com o patriotismo a cem gráos centigrados, desfechava vivas e morras truculentos. Viveu Clemenceau, Joffre, Foch; morreu Hindenburgo, Mackensen e Enver-Pachá. Os gavroches (está no «Lyrio») iam pelo caminho juntando pedras para o bombardeio da colônia. Defrontados que foram com a odiosa pharmacia, nela choveram projectis, entre apupos e assobios. Não ficou vidraça intacta. Um obuz, penetrando na prateleira das drogas, quebrou ali o vidro de sal-amargo. Também a ipéca e a tintura de iodo foram seriamente maltratadas. Mas a colônia allemã não deu mostras de si. Nem Müller nem a criada tiveram a coragem de mostrar a ponta do nariz. Covardes!

Os patriotas, cansados de apedrejar e desafiar, arrancaram a placa da botica e levaram-na à guisa de trophéo para a redação do «Lyrio», onde beberam várias garrafas de champanha (soda), sempre pela verba “socorros públicos”.

Na noite desse dia a esposa do coronel José Pedro teve uma violentissima cólica intestinal. Receitaram-lhe sal-amargo. Correu á botica uma negrinha, que voltou de mãos abanando.

— Seu Muller manda dizer que não tem; que os patriotas quebraram o vidro; que se serve sal de azedas, que tem.

A pobre da dona Candoca estorceu-se e...

— E' isto! — exclamou. — Aquele bódinho faz das suas e quem paga o pato é a pobre de mim. Ai, ai!...

— Mulher! — interveio o marido. — A Patria acima de tudo!

— Vocês são uns...

O chronista não ouviu o qualificativo de d. Candoca, mas a avaliar pela cara do marido, foi forte. O homem passou embezerrado o resto do dia.

A' noite chegou telegrama do chefe de polícia: “Verificamos prisioneiro subdito inglez. Receios complicação diplomática. Guardem reserva ridiculo incidente”.

O coronel José Pedro, desapontadissimo, esteve meia hora com o papelucho na mão, meditando. Depois reuniu os paredros e disse:

— Recebi telegramma confidencial do chefe. O caso é mais grave do que suppuz. Sou obrigado a guardar reserva. Altos segredos de Estado, vocês compreendem...

Apatetamento geral. Cada um comentou a seu modo o caso, e Leão Lobo, incontinenti, recorreu ao método charadístico: Telegramma, reserva, segredo de estado... Conceito? Engasgou no conceito. Era a segunda vez na semana que por falta de conceito perdia uma charada.

Assim permaneceram até a volta dos heroicos expedicionários. Que bela festa, a recepção! Foi a banda esperal-os à boca da cidade, e com ela os patriotas, o Tiro, as moças. Mal os