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CIDADES MORTAS

vergonteas mortiças de familias fidalgas, de bôa prosapia entroncada na nobiliarchia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem de patina, e cujo estuque, lagarteado de fendas, esborôa á força de goteiras, paira o bafio da morte. Ha nas paredes quadros antigos — «crayons» — figurando effigies de capitães-móres com barba de collar; ha candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinavre. Mas nem se accendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados. E em redor delles se agruma o bolor rancido da velhice.

São os palacios mortos da cidade morta.

Avultam em numero, nessas cidades, casas sem janellas, só portas, tres e quatro: antigos armazens de commercio, fechados, que o commercio desertou tambem.

Numa praça vazia, vestígios vagos de um edificio de vulto. Que é? O antigo theatro..... um theatro onde já resoou a voz de Rosina Stolze, da Candiani...

Não ha na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se, estes, remendões, aquelles, meros demolidores, tanto vae da ultima construcção. A tarefa se lhes resume em especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendal-as mal e mal. Um dia mettem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil réis o milheiro — e fica á inclemencia do tempo o encargo de aluir o resto.

Os ricos são dous ou tres Eusebios Macarios aposentados, com cem apolices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, collector, delegado.

O resto é a «mob»; velhos mestiços de miseravel descendencia, roida de opilação e alcool; familias decahidas, a viver mysteriosamente umas, outras á custa do parco auxilio enviado de fóra por um filho mais audacioso que emigrou. «Bôa gente» que vive de aparas.

Da geração nova os rapazes emigram cedo, meninos ainda; só fica a próle feminina — sempre fincada de cotovelos á janella, negaceando um marido, que é um mytho em terra assim, donde os casadouros fogem.

Pescam, ás vezes, as mais geitosas, seu promotor, seu delegadozinho de carreira — e o caso torna-se um acontecimento historico criador de lendas.

Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta bifurcado em ponteagudas eguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postaes á garupa, murchas como figos seccos.

Até o ar é proprio; não vibram nelle sereias de auto, nem cornetas de bicycletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plá-plás de mascateiros turcos. Só o estremecem os velhos sons coloniaes — o sino, o chilreio das andorinhas que moram na egreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que, em bando rumoroso, cruzam a cidade, bem alto.

Isso nas cidades. Nos campos não é menor a desolação. Legoas a fio se succedem de morraria aspera, onde reinam, soberanos, a saúva e seus alliados o sapé e a samambaia. Por ella passou o café, como um Attila. Toda a seiva foi sugada e, sob forma de grão, ensaccada e expedida para fóra; mas do ouro recebido em troca nem uma oitava permaneceu alli, empregada em restaurar o torrão.