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COISAS DO MEU DIARIO

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mare de Autueil, de Paulo Kock, ad usum dos conhecedores do francez; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo das imaginações femininas; e a Ilha Maldicta de Bernado Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas. O dono primitivo seria, talvez, algum padre, finado sem herdeiros.

Depois, à força de girarem de déo em déo, forraram-se á propriedade individual.

Quem, por exemplo, deseja ler o Rocambole, diz na rodinha da pharmacia:

— Onde andará o Rocambole?

Informam-no logo, e o candidato toma-o das mãos do detentor ultimo, ficando desde esse momento como seu novo depositario. Processo summarissimo e intelligente...

Quando se exgottou minha provisão de livros, e deliberei recorrer ao stock local, ignorante ainda da riqueza litearia da terra, dirigi-me a um dos Doze.

O homem enfunou-se de de legitimo orgulho ao dar os informes pedidos.

— Temos obras de folego, poucas mas boas — disse — para todos os paladares, Genero pandego, para divertir, temos, «por exemplo», La mare d'Auteuil, de Paulo de Kock. Impagavel!

— Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.

— Temos o celebre Rocambole,«genero imaginoso»; infelizmente está incompleto, faltam «uns» dezessete volumes.

— Não me serve o resto.

—E temos uma obra prima nacional, a Ilha Maldicta, do «nosso» Bernado Guimarães.

Parando ahi o catalogo era forçoso escolher.

No concerto dos nossos romancistas, onde Alencar pé o piano querido das moças e Macedo a semsaboria relamboria d'um flautim piegas, Bernardo é a sanfona.

Lel-o é ir pro mato, para a roça — mas um roça adjectivada por menina de Sião, onde os prado são amenos, os vergeis floridos, os rios caudalosos, as matas viridentes, os pincaros altissimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza como um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paizagens com qualificativos surrados do máo contador. Não existe nelle o vinco energico de impressão pessoal. Vinte vergeis que descreva são vinte perfeitas amenidades. Nossas desageitadissimas caipiras são sempre lindas morenas côr de jambo.

Bernardo falsifica o nosso mato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinheiros, Bernardo aponta doçuras , insectos maviosos, flores olentes. Bernardo mente.

Mas como mente menos que o Kock ou o truculento Terrai, escolhi-o.

Veiu o livro. Era um volume velho como um monumento egípcio e, como elle, coberto de inscripções. Cada leitor que passava ia alli deixando o rastro gravado a lapis.

«Li e gostei", dizia um; «Li e apreciei», dizia uma senhorita. Uma inscripção quasi em cuneiforme rezava: «Fulano leu e apreciou o talento do grande escriptor brasileiro.» Outro versificava: «Já foi lido - Pelo Walfrido». Certa moça dizia parcimonialmente: «Li», e assinava. Um amigo da ordem inversa pôs: «Li e muito gostei. Houve um que discordou: «Li e não gostei.»

O patriotismo literario dum anonymo saiu a campo em pról do