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Página:Contos Populares Portuguezes colligidos por F. Adolpho Coelho.pdf/22

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XVIII

poso e os Contos de proveito e exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso assumem por isso uma importancia excepcional. A mais antiga edição d'esses contos é de 1575, segundo Theophilo Braga que mostra que elles foram escriptos por occasião da peste de 1569. Theophilo Braga asseverou terminantemente que Trancoso bebeu na tradição popular; parece-nos muito provavel isso para alguns contos, mas cremos que uma demonstração completa d'essa these ninguem a poderá dar. Entre os contos que giram na tradição popular e se acham em Trancoso citaremos como exemplo o conto das duas irmãs invejosas, de que temos já quatro versões populares portuguezas. Eis em resumo a de Trancoso:

«Desejava um rei mancebo casar com uma donzella de virtuosos costumes, claro sangue e bom viver. Um dia passando por uma rua ficaram fallando a umas janellas tres mulheres formosas e tendo o rei perguntado o que diziam foi-lhe respondido: «Senhor, uma disse que se casasse com o principe faria de suas mãos lavores de ouro e seda tão valiosos que bastariam para gasto da mesa; a outra disse que se casasse com elle lhe faria camisas tão preciosas que valeriam tanto como tudo o mais que elle vestisse e calçasse e a ultima dissera que se casasse com o rei teria delle dous filhos formosos como o ouro e uma filha formosa como a prata».

O rei mandou chamar á sua presença uma por uma as tres irmans; as duas primeiras disseram que fariam em serviço do rei tudo a que as suas forças bastassem; mas a terceira que era a mais nova, e mais formosa repetiu que lhe daria dous filhos formosos como o ouro e uma filha mais formosa que a prata. Casou o principe com a mais nova.

As duas irmans mais velhas, de inveja pela preferencia dada á mais nova, quando ella deu á luz os filhos promettidos, substituiram-os por monstros peçonhentos, dizendo ao rei que a rainha os dera á luz. O rei aborreceo por isso tanto a sua mulher que a expulsou; a rainha como creada e forasteira foi admittida n'um convento, onde pouco depois foi servida como as freiras, que a suspeitaram d'uma elevada posição.

Tentavam as cunhadas agradar ao rei, mas este soffria muito de paixão pela mulher expulsa, embora julgasse que a expulsara com razão. Um dia em que, para se distrahir, ia ao longo de uma ribeira, viu á borda da agua uma casa nova, a cuja janella estava um formoso menino, pobremente vestido; depois appareceu outro menino e uma mulher com uma menina pequenina pela mão. A mulher disse ao rei que não sabia de quem eram aquelles meni-