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de receber uma carta do Algarve, em que se me diz que tem havido grandes difficuldades para se obterem os contos, porque as velhas não os querem narrar nem á mão de Deus-Padre. É preciso gastar dinheiro e tempo; paciencia, sobretudo, é que é muito precisa. Só o amor que tenho por estas coisas me força a fazer despezas extraordinarias, como uma correspondencia aturada para cá e para lá, quasi todos os dias, devendo tambem satisfazer a algumas exigencias de amigos. Um me diz, por exemplo, que teve de ir d’um para outro ponto distante, gastando na diligencia uns tantos réis, só para me obsequiar, e que uma velhinha de cem annos recebeu tambem uns vintensitos pelo trabalho de contar

Na exploração que fizemos na provincia do Minho soubemos da existencia de um patranheiro de fama, por alcunha o Cuco, quasi narrador de profissão; ouvimos-lhe muitos contos que passámos á escripta, mas a sua dicção era sobretudo notavel pelas construcções linguisticas, fórmas dialectaes, locuções de giria, com uma prolixidade de repetidos parallelismos e com uma incongruencia verdadeiramente infantil. Temos aqui representados os trez mais puros vehiculos das tradições populares, as crianças, como na ilha de Sam Miguel, as mulheres e velhas, como em Sam Jorge e no Algarve, e os homens do povo, como nos contos do Minho. O estylo prolixo dos contos foi conhecido por Soropita no seculo XVI, e Francisco Rodrigues Lobo imitou-o habilmente em um conto da sua Côrte na aldeia;[1] é este o vicio que amesquinha o alto valor tradicional dos Contos e Historias de proveito e exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, que pela primeira vez vulgarisamos, destacando-os dos exagerados preambulos e divagações do nosso quinhentista. Para completar a tradição portugueza nas suas ra-

  1. É extremamente curioso o Dialogo X: Da maneira de contar historias na conversação.