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comida referia-se ao caso de meu pae ter dividas, por que o que colhesse era tudo para as pagar.

— Muito bem, disse o pae; e agora me dirás, porque me deste á ceia a cabeça da gallinha para mim, as azas a tua mãe, e os pés ao nosso hospede?

— Dei a meu pae a cabeça, porque a si lhe compete o governo da casa; a minha mãe as azas, para agasalhar a familia; ao hospede as pernas, porque elle anda em viagem; para mim o peito, para ser forte contra as desgraças que por amor d'elle me vierem.

O camarista ouviu tudo, e já gostava da menina por que era formosa, e ainda ficou mais encantado com a sua esperteza. No outro dia resolveu pedil-a ao pae, que lhe deu o consentimento. Veiu com ella viver para a côrte, mas não quiz apresentar a mulher ao rei. O rei andava desconfiado que não seria bonita, e jurou de a vêr, désse por onde désse. Rondava-lhe a rua, mas as janellas estavam sempre com as cortinas corridas; por fim sempre comprou uma criada, que o deixou entrar no quarto da senhora quando ella estava dormindo e tinha o marido fóra da terra. O rei jurou-lhe que não lhe poria mão, e que era só para vêl-a. Entrou no quarto de dormir pé ante pé, e viu uma bella camilha com cortinas de damasco verde, cerradas; abriu-as, e viu a cara mais linda do mundo. N'isto vem a criada de repente dizer para que fugisse, porque chegava o amo. O rei com a pressa deixou cair uma luva. O camareiro veiu para o seu quarto e a primeira cousa que viu foi a luva; ficou desconfiado, e nunca mais tratou bem a mulher. Era um inferno em casa. A criada com remorsos de ter feito aquillo áquelles bem casados, foi contal-o ao rei. O rei lembrou-se de que tinha perdido a luva, e mandou chamar o camareiro, e disse-lhe: — Tendes-me feito uma grande desfeita em nunca me terdes apresentado a vossa mulher para a conhecer.

— Senhor, é que ella é muito doente.