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LITTERATURA DOS CONTOS POPULARES
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pam termos das velhas, nem remendos de descuidados, que lhe não misture.» Em seguida exemplifica o processo com uma Historia contada com o erro do costume dos ignorantes:

«Dizem que era um rey; vem este rey casou por amores com a filha de um seu vassallo; era ella tão fermosa, que podia por sua belleza ser confiada, pois por essa alcançara o ser rainha; mas sem lhe valerem esses privilegios, deu em tão ciosa, que bem á mão, não dava o marido um passo que ella não acompanhasse com as suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ella, que jámais vivia em paz com seu gosto. Vem ella, e por vencer esta desconfiança, vai e manda secretamente chamar uma feiticeira, que n'aquella terra havia, de muita fama, em cujo engano achavam os namorados huma botica de remedios para seus males. Assim que dizia esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligencia, feitas algumas fingidas, meteu em cabeça á boa rainha ciosa, que o marido amava com grande extremo a uma criada sua, que ella pintou logo a mais galante, airosa, galharda e bem assombrada, que havia no paço. Quando ella aquillo ouviu, ficou (guarde-nos Deus) como uma mulher transportada e sem sangue; por maneira que prometteu áquella feiticeira que lhe faria e aconteceria se a desaffeiçoasse ao rey d'aquelles amores e empregasse n'ella todos os seus: a outra, que não queria mais que aquillo, vêde vós como ficaria contente, vem e promette á rainha que lhe daria tres aguas conficionadas, de tal maneira que huma, tanto que el rey a provasse, bebesse logo os ventos por ella, e lhe quizesse mais que o lume dos olhos com que a via; a outra, que em a rainha a bebendo, parecesse a seu marido o maior extremo da formosura, que havia no mundo; a terceira, que tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira que a todos aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a rainha lhe deu muitos haveres e fez grandes mercês e