Página:Contos Tradicionaes do Povo Portuguez.pdf/333

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tempo convinhavel pera o tirar do erro en que andava. Hum dia disse elrrey aaquelle seu privado:

— Vem e andemos pela cidade se per ventura veremos alguma cousa proveitosa.

E andando elles pela cidade, virom lume que luzia per hum furado. E teverom mentes per elle, e viram huma casa soterranha em que estava hum homem muy pobre vestido en huma vestidura muy vil e muy rota. E ante elle estava sua molher que lhe escantava o vinho per hum vaso de vidro. E tanto que o marido tomou o vaso de vinho na maão, começou de cantar altas vozes e ella outrossy a balhar ante elle e louvalo muyto, e tomavam ambos muyto prazer. E aquelles que iam com elrey, esteverõnos oolhando hum grande espaço, e maravilhavamse porque aquelles homees tã pobres que non aviam casa en que morasen, nem vestuduras senõ muy rotas, como faziam sua vida tan segura e com tanto prazer. Entom disse elRey ao seu conselheyro:

— Oo amigo, que maravilha he esta, que nunca a nossa vida foy tan aprazivel nem tam leda a my nem a ty porque avemos tantos meios e tantos avondamentos, como he a sua destes sandeos, ca como que ella aja vil e mesquinha e aspera, parecelhe a elles leda e blanda.

Quando esto ouvyo o privado entendeu que tinha tempo de castigar elrrey e disselhe:

— Senhor, quejanda te parece a vida destes homens?

Elrrey disse:

— Pareceme que he a mais mesquinha e a mais mal aventurada de todallas vidas que eu vy.

E disselhe o privado:

— Senhor, sabe por certo que por mais mesquinha e mais mal aventurada teem a nossa vida aquelles que contemplam e recontam a gloria perduravel e celeste que sobre poyam todo sido. Ca os vossos paaços resplandecentes como ouro e as vossas vestiduras nobres e fermosas mais fedorentas e mais feias parecem que o esterco aos